Álvaro Seiça

Álvaro Seiça

Álvaro Seiça (b. 1983, Aveiro, Portugal) is a writer, editor and researcher. He published three poetry books, the most recent being permafrost: 20+1 zeptopoemas sms (Bypass Editions, 2012). He holds a MA in Contemporary American Literature, with the thesis “Transduction: Transfer Processes in Digital Literature and Art” (University of Évora, 2011), winner of the Moser Prize 2013. Seiça has published several poems and essays on different journals. In 2007, he co-founded Bypass, a nomadic editorial and curatorial project. He currently lives in Bergen, Norway, where he is a PhD fellow in Digital Culture at the University of Bergen.

 

os instantâneos e fotogramas de azra azinatti

poemas interrompidos

 

aktra

acto 1

uma estrada. um cruzamento. um campo. não há nenhuma árvore
há bastante sol
(afinal, é só uma imagem num ecrã, gigante)

como um girassol, a rodar lento sobr

<íon> (suspira) não me fales de girassóis!
<tatsuo> (incidindo) porquê?
<íon> não gosto de girassóis, lembra-me logo
as estradas de espanha nos anos 80 e 90!
<tatsuo> já leste cada inflorescência de um girassol?
<íon> cada inflo quê?
<tatsuo> já leste cada capítulo de um girassol?
(pausa. íon não responde)
é como a biblioteca do borges, como os olhos do borges!
<íon> sim, a biblioteca já li! (olhar parado no espaço) interminável…
(pausa) as estradas de espanha eram intermináveis,
como um capítulo de um romance!
não há paciência, é um aborrecimento!
<tatsuo> mas não é um romance!
<íon> está bem, mas… não coloques girassóis nesses versos, pode ser?
<tatsuo> tudo bem, eu altero, deixa-me retirá-los…

(há uma ampliação da imagem no ecrã. não se vê ninguém, só se ouve)

como um estame distendido no tempo, a fotossíntese d

<íon> outra vez? acaba com a botânica, tatsuo!
lembra-me as aulas de liceu!
<tatsuo> (pausa. ouve-se tatsuo de um lado para o
outro. dobra a paciência e suspira)
mas já tentaste auto-induzir a amnésia?
<íon> auto-induzir a amnésia? como é que isso se faz?
<tatsuo> (compenetra-se) a memória
funciona como uma árvore… só que,
por vezes,
as raízes estão entreligadas
com os ramos,
com os galhos, e até
com outras árvores e outras raízes…
induzir a amnésia é cortar os galhos e deixá-los caídos,
tal como um sobreiro, na época de poda!
<íon> mas… a memória é linguagem! a imagem da árvore não me convence!
para mim, a memória é como se
andasses por uma olaria e visses o mais interessante naquele
pequeno monte, naquela amálgama de barro mole e cacos
partidos, onde, no meio da mistura, se distinguem pedaços de várias formas, sem
percepcionares onde acaba, onde termina uma, e começa a outra…
<tatsuo> bela imagem, sem dúvida! e repara, quando
esses pedaços se tornam indistintos,
barro mole ou rijo de novo,
estás a induzir a amnésia!
<íon> está bem, mas… era sobre isso que estavas a escrever?
<tatsuo> também…
<íon> mas… acaba com a botânica, em geral!
<tatsuo> que polícia! (pausa) tudo bem, eu altero…
(aparece um polícia em palco)
<polícia> (sério) alguém me chamou? há algum problema?
<tatsuo> não, não! pode ir embora, obrigado!
<polícia> muito bem, estava só a cumprir ordens. se precisarem de mim, é só
chamar!
(desaparece um polícia de palco)
<íon> (atónito) quem era aquele? aquele também entra?
<tatsuo> não, claro que não… mas espera… não querias que eu alterasse?
assim não me consigo concen…

como uma pálpebra trespassada

(aktra entra em campo, descalça. sai da imagem. a imagem volta ao estado
inicial e as personagens já estão no palco de novo)

<aktra> (não se compreende como ouvira a conversa) assim está melhor!
<íon> sim, assim sim! (pausa) eu também gostava das aulas de anatomia!
(ninguém corrobora)
<aktra> assim, está bem melhor!
<íon> mas… como é que… estiveste a espiar? como é que

como uma pálpebra trespassada, um relâmpago erigindo hexágonos
indefinidos, dentro de círculos, transitórios, na retina da memória,
como uma tela vazia, inóminavel, aproximando o que escapa

é esse o ofício do poeta: compor a breve luz que trespassa as pálpebras

sem luz, nada existe, não há cor, não há forma, não há palavras, não há poesia

<aktra> (levantando alternadamente os pés) claro que há,
na sombra há escrita,
a literatura vive na escuridão!
(baixa a cabeça) tenho os pés frios!
<íon> (patético) diria mais,
a literatura vive na penumbra! vive para lá do relâmpago!
(escuta-se um ruído contínuo
de trovoada, nos bastidores, provavelmente feito
com uma chapa de raios x, que quase perfura os tímpanos)
<tatsuo> (surpreendido por não ter visto que aktra estava
descalça. descalça-se)
boa sonoplastia! têm isto muito bem coordenado!
<aktra> (exaspera) não era suposto inserirem sons que imitem outros sons!
quem é que se lembrou disso? não leram?!
<tatsuo> (didáctico)
o relâmpago desperta, clarifica e, depois, prolonga! (pausa)
bem, íon, parece que já me percebeste!
nas estradas de espanha havia tempo para pensares.
(vira-se para aktra) toma aktra, calça as minhas botas!
(continua, enquanto lhe estende as botas)
é do interminável
que nasce o momento,
do monótono
que nasce o singular,

sem luz, nada existe, não há cor, não há forma, não há palavras, não há poesia

<aktra> (gesticulando) claro que há,
a poesia não nasce das palavras,
(veemente) a poesia sobressai da escuridão!
<tatsuo> (apreensivo)
mas,
no escuro,
quem ler-me-á?
quem ver-me-á?
<aktra> (calma)
no escuro,
quem quiser,
escutar-te-á

 

acto 2

no mesmo dia. à mesma hora. no mesmo local.
a imagem expande-se pelo palco.
(afinal, hoje, já são uns minutos mais tarde)

<aktra> (desabafa) às vezes apetecia-me ter outro nome.
é apenas uma questão
de som,
não sei, às vezes as pessoas têm dificuldade em dizer o meu nome!
sinto que me paralisam, chamando-me apenas!
<tatsuo> (surpreendido) o som? e o sentido? tem que se lutar
contra a coagulação do sentido! contra essa paralisia!
<íon> que pessoas? tens namorado?
<aktra> (ainda mais surpreendida) não!
<tatsuo> achas que não? já observaste um pássaro? é som e é sentido!
o som evoca um aroma, o som evoca uma cor, uma consistência, a saliva!
tem que se lutar… e quanto a namorado, a aktra não
<íon> tem, tem! (pausa) um pássaro, um pássaro, que sinestesias…
<aktra> o que eu acho é que não tenho namorado. acho que é mais uma questão
de som,
do som do meu nome, da sua bizarria. (pausa) um pássaro, para mim, é só som,
porque tenho tentado apagar o sentido. representava a maior liberdade possível
até ao dia em que (olha para o chão) encontrei pela primeira vez
um pássaro morto, as asas murchas, os olhos opacos, cinzentos.
eu costumava ir para o campo,
sozinha.
saía da cidade, com messiaen no bolso e na cabeça, para escutar
o canto dos pássaros, tentando transcrever as diferentes tonalidades melódicas
nas minhas peças. numa destas incursões, encontrei um pássaro
morto,
no meio, no fundo das ervas altas. a partir daí, nunca mais consegui
olhar para um pássaro pensando que algo se criasse. tornou-se um bloqueamento,
um som
cortado, logo à partida, pelos nervos das asas… já nem o messiaen me vale,
agora! vejo morte num pássaro…
(aktra fica aturdida. olha para o chão)
<tatsuo> messiaen? pffff! gosto muito da música, mas aquele lado
católico, que fervoroso…
<íon> quem é o messiaen? já pareces o meu irmão theo a falar, tatsuo!
<tatsuo> mas o que é que o teu irmão faz?
<íon> hum… agora é jardineiro! até já foi promovido e tudo… agora é
chefe!
<tatsuo> ai sim? mas está a dirigir alguma equipa numa empresa?
<íon> hum… não propriamente… o theo é jardineiro da câmara.
há uns meses foi-lhe atribuído um canteiro especial
no centro da cidade. um canteiro circular, onde estão a desenvolver uma
experiência com túlipas… e ele é o responsável. rega todos os dias o raio
das flores com um liquído especial qualquer…
<tatsuo> então o teu irmão é cantoneiro, é isso?
<íon> (sobressaltado) não! cantoneiro é o homem do lixo… o theo não! a
profissão dele é jardineiro paisagista! ele até diz, a rir-se, que no contrato
colocaram (ri-se) técnico jardineiro paisagista de nível 5 e
supervisor de sustentabilidade e manutenção de canteiro público experimental!
<tatsuo> (ri-se) mas que experiência é essa?
<íon> também não sei bem… o theo só disse que testariam
uma cor rosa-lacre em túlipas transgénicas…
<tatsuo> rosa-lacre? e o teu irmão sabe muito sobre isso?
<íon> acho que sim… o theo disse-me que quando era activista
fez uma pesquisa sobre a manipulação genética de alimentos e
plantas, em especial, na introdução de
elementos corantes sanguíneos para clonagem,
pois iam começar uma acção qualquer
de protesto junto de uma empresa que…
<tatsuo> ah! então agora passou para o outro lado?!
<íon> para o outro lado? que lado?
<tatsuo> mas, desculpa… o theo e tu são muito chegados?
<íon> (ainda a pensar) lado… hum… somos… bom,
somos gémeos!
<tatsuo> (repara que aktra está absorta) aktra!
(aproxima-se) deixa que esse traumatismo se apague, aktra!
(a sorrir) deixa que o som de um pássaro sopre de novo
e elimine essa imagem! talvez ajude se mudares de nome!
(pausa. baixinho) queres mudar de nome?
<íon> noutro dia, escrevi um poema sobre pássaros, o meu primeiro!
gostavam de ouvir? a ornitologia desperta em mim cada vez mais
expressões, criatividade… é uma espécie de ontologia da ornitologia,
o que estou a desenvolver… até pretendo publicar um livro, sabiam?
<tatsuo> (desconfiando) ornitologia da ontologia, mas o que é que isso
significa?
<íon> (muito certo de si) não é ornitologia da ontologia, mas
ontologia da ornitologia. é curioso como um pássaro, na penumbra,
dependendo da sua posição na árvore, parece
a continuidade ou o fim de um ramo…
<aktra> (desperta) sim, claro! mas para mim o campo já não é
o canto dos pássaros de messiaen, a descoberta da criatividade…
(cresce, ansiosa) passou a ser a imagem estática daquele pássaro
morto,
com as asas velhas,
os olhos baços,
no meio das ervas,
no fundo das ervas,
das ervas altas, altas, altas,
o calor, o calor, o calor do cheiro do pássaro
a decompor-se…
a decompor-se…
os insectos por dentro e por fora…
ouvir falar num pássaro, hoje em dia,
é sentir uma espécie de esfaqueamento…
sinto-me num gulag!
<íon> o quê? gulyás?
<tatsuo> (ironiza e quebra o momento. ri-se) o hitchcock teria gostado de
ti, para tema!
<íon> quem é o hitchcock?
<aktra> (acalma-se e sorri) du maurier, queres tu dizer?
<tatsuo> não, o que te quero dizer é:
azra!
gostas do nome?
<aktra> (confusa) azra? isso é o quê?
<tatsuo> o teu novo nome! gostas?
<aktra> (radiante) azra? azra? adoro!
<íon> (sorriso patético) eu também!
<tatsuo> a partir de agora, chamamos-te azra. não é só
o som,
mas o sentido, o significado é importantíssimo!
(dirigindo as mãos para cima, aktra faz um sinal com os dois indicadores,
a girarem um em torno do outro. algo se altera no ecrã)
<tatsuo> olha, o ecrã!
<íon> o ecrã? (perplexo) está um pouco estranho… o que é aquilo?
(corre no ecrã, linha por linha:

<html>
<head>
<script type=»text/javascript»>
$(document).ready(function(){
$(«button»).click(function(){
$(«<b>aktra</b>»).replaceAll(«azra»);
});
});
</script>
</head>
<body>
<p>aktra</p>
<button>azra</button>
</body>
</html>

termina. a imagem volta ao estado inicial. as coisas estão
no mesmo local, embora o seu nome possa ser outro)
<azra> obrigada pelo nome! gosto muito!
(pausa) agora já está tudo alterado!
<tatsuo> óptimo! gostava de regressar ao poema. concordas?
<azra> claro, continua…

as coisas ao largo, parecendo mover-se, com a âncora cravada
o receio: entrarem na praia, encalharem e serem nomeadas
cada palavra é uma ilusão, uma bóia ancorando-se em movimento

<íon> (tem uma camisola fina lilás e umas calças de fato-de-treino
cor-de-laranja, ou amarelas,
dependendo do sítio de onde se olha, ou de quem olha)
as tuas metáforas são uau são mesmo, são… que imagens…
<tatsuo> é apenas memória! numa livre associação de ideias há todo um
tratado da memória.
<íon> (retira uma toalha de praia da mala e abre-a)
vou estender a memória de ontem
já aqui no soalho, não acham uma óptima ideia?
(deita-se, a barriga para cima)
com tanto areal e tanta miragem, que se afundem as ilusões no corpo!
<azra> agora estás no oceano, tatsuo?
e contas-me histórias de alterar o sentido?
gostei muito do meu nome, mas varia também os teus versos!
não me lembres tudo o que já li!
<íon> (óbvio) mas está muito bom! não é alterar, é transfigurar o real!
<tatsuo> tudo bem, eu altero, deixa-me sair do oceano…
<íon> (enlaça as mãos por baixo da nuca) não, não, não alter

os teus olhos, escotilhas que se tapassem, nunca viram
o tom da tua nuca, nem as tuas superiores vértebras
no entanto, confias no espelho, confias na imagem que dizem tua

<íon> (levanta-se) estás a escrever sobre o quê, agora?
<azra> sim, é verdade, confio,
como confio no meu nome, ou melhor, confiava!

do branco, a poesia é um limbo seguro por um ponto
uma adição que começasse pelo lado
esquerdo e o seu resultado fosse exacto

nomear as coisas é preencher um cálculo linguístico

(íon enche dois balões, um branco e um vermelho)
<azra> linguística não, por favor! (repara nos balões)
<íon> nem ma-te-má-ti-ca, obrigado!
<azra> o que é isso, íon? não há nenhuma festa, hoje!
e essas são as cores da…
<íon> não! memórias de ontem! ainda os tinha aqui no bolso.
foi um presente!

as achas rachadas aguardam o inverno
num alto e tapado monte
assim se resguardasse a linguagem

<íon> acho que já estou a perceber!
<azra> está bem melhor, tatsuo! bem melhor!
<íon> (olha para trás) que cheiro é este?
<azra> (exaspera) retira esse tape… essa toa…
sim, retira essa toalha aí do chão, por favor!
este palco é um palco de teatro, não é para ser imaginado como algo mais,
não representa nada mais, nem sequer outro espaço!
<íon> (encolhe-se) ok, ok! mas… que cheiro é este?
(ninguém responde.
há um vulto todo vestido de preto, silencioso, de média estatura e com
um gigantesco contrabaixo, de caixa toda branca, às costas,
que atravessa o palco em direcção ao fosso,
ou à plateia, caso não haja fosso)
<tatsuo> (duvida de si mesmo) o que era aquilo? será que vi bem?
parecia um contrabaixo a andar sozinho pelo palco…
<íon> eheh! (espanto) mas… é a minha amiga emily! ela é contrabaixista!
não sabia que ela também entrava!
<azra> (despachando) entra, entra! vai tocar um solo durante o ensaio…

 

2.1.

<íon> emily! (gesticula)
venham comigo, vou apresentar-vos!
(íon desce do palco por um lado. tatsuo e azra seguem-no. quando
chegam perto da plateia, já emily está a subir para o palco,
pelo outro lado, ignorando os seus perseguidores.
a imagem no palco apaga-se, como uma vela ao vento.
os três observam emily, que se posiciona no palco com
o contrabaixo ignífero, pronto a disparar.
há um feixe na vertical, que desenha um cone de luz
em torno de emily, aos poucos, envolvendo todo o corpo e instrumento)
<azra> olhem, é o mccall!
(uma melodia irrompe, vinda grave do contrabaixo)
<tatsuo> olhem, é o xenakis!
<azra> o xenakis?
<íon> não é nada, é a emily! a minha querida emily!
<tatsuo> mas e o poema?
<azra> (exalta-se) continua,
não pares, não pares agora!

 

2.2.

<íon> (gesticula) emily! (emily ignora)
<azra> (decidida) venham! mudemos de ponto de vista!
não faz bem estar sempre dentro dos acontecimentos, às vezes
(desloca-se)
<tatsuo> às vezes, é melhor ir para fora da cidade,
como o osip mandelstam fazia,
para compreender melhor petersburgo!
(azra desce do palco. tatsuo e íon seguem-na. estancam
no meio da plateia, enfrentando o local
onde ainda há pouco ensaiavam.
a imagem no palco apaga-se, como uma lanterna.
emily sobe para o palco. prepara
o contrabaixo, que está ainda mortificado.
há um feixe na vertical, que desenha um cone de luz
em torno de emily, aos poucos, envolvendo todo o corpo e instrumento)
<azra> olhem, é o mccall!
(uma melodia irrompe, vinda grave do contrabaixo)
<tatsuo> olhem, é o xenakis!
<azra> o xenakis?
<íon> não é nada, é a emily! a minha amiga emily!
<tatsuo> mas e o poema?
<azra> (exalta-se) continua,
não pares, não pares agora!

a palavra é uma rocha metamórfica
à qual deves prestar a mais profunda erosão
é uma boca de ardósia, para perfurares,

até que rompas, local, uma cóclea de calcário

se a resina se cola, entre ti e as palavras,
arranca a cartilagem aos ossos, até jazerem limpos,
e escreve, como se fizesses um pacto etílico a cada transfusão

(o solo de contrabaixo é raríssimo. pode durar alguns minutos. a partitura
pode ser escolhida pelo encenador, pelos actores ou pela contrabaixista.
a contrabaixista também pode improvisar, se quiser, ou conseguir)

 

acto secreto (facultativo)

ainda ninguém sabe onde
(mas, por enquanto, pode ser no próprio palco)

<íon> (muito sério) onde estão as figuras de estilo?
<azra> (boquiaberta. indigna-se) onde estão as figuras de estilo?
é essa a tua primeira pergunta? vês, tatsuo, o problema da educação da poesia?
é o mesmo da arte! (pausa) onde está o tatsuo?
(olha em redor. silêncio. furiosa) quem te ensinou isso, íon?
<íon> não sei onde foi! quem?
(tenta confirmar a pergunta) quem me ensinou? várias professoras e
professores de língua. eu apreciava muito aprender poesia e recitar versos.
havia professores muito bons, eu adorava…
<azra> (interrompendo) haviam? havia!
<íon> sim, havia!
<azra> pois eu também tive professores muito bons a ensinarem
linguística. mas a poesia não é linguística.
sempre detestei aprender poesia nas aulas,
pelo menos, daquele modo.
(alterna o tom) onde estão as figuras de estilo?
isso é começares logo a trinchar o poema, vasculhares no meio dos versos
por algo útil, concreto, como se fosse um quarto de arrumações,
a vasculhar pelas metáforas, pelas perífrases, as hipérboles, as onomatopeias,
as sinédoques, as metonímias… e, depois de classificares tudo,
fazeres um inventário de todas as figuras de estilo, para já não referir a métrica,
tudo escandidinho, e as rimas… tudo se resumia às rimas,
abba abba cde cde, aabb abab cd cd, ee, ff, gêgê gêgê,
aos géneros, aos esquemas usados, às estruturas. no final, parecia que
o melhor poema era aquele que acumulava mais figuras, mais variedade de
nomes estrambólicos, mais anáforas… (pausa) de tanta repetição, nunca
cheguei a perceber o que era uma metonímia!
(ouve-se uma voz computorizada com um leve toque a anglicismo:
é u-sar u-ma pa-la-vra no lu-gar de ou-tra, u-ma mu)
<íon> (perplexo, quase assustado) mas o que foi isto?!
esta era a minha fala…
(abana a cabeça) há qualquer coisa estranha neste teatro…
(olha para trás) para além do cheiro (olha para a frente) tenho a sensação
que a plateia está cheia! todas as cadeiras, aqui, alinhadas, parecem vivas…
(pausa) mas… esta era a minha fala…
<azra> (zanga-se) claro que era! deve ter havido um problema
qualquer… não estás a ler o guião no ecrã? (íon gira o corpo
para o ecrã e fica especado) para além desse teleponto,
há um guião sonoro automático,
se não quisermos trabalhar com imagem ou
se houver algum problema técnico… deve ter sido isso que…
<íon> (olhando o ecrã) que máquina é essa?
<azra> (eleva a cabeça para o alto
da plateia, onde está a cabina de som. fala alto)
está tudo bem?
(dentro da cabina, um homem articula bastante a boca, mas nenhum som
ecoa no palco. o homem aponta com o indicador esquerdo, insistente,
para o microfone e, com a outra mão, faz um sinal de espera para azra)
<íon> nem por isso! que máquina é essa?
<azra> (resoluta) bem, o sistema de som não está mesmo operacional.
(olha para o ecrã) onde é que estávamos?
<íon> (ainda vidrado no ecrã, como se nunca o tivesse visto)
ah! ali!
(e aponta com o mindinho direito)
é usar uma palavra no lugar de outra, uma mudança de nome, isso eu sei!
as figuras de estilo são muito importantes!
<azra> pois são, mas não existem só figuras de estilo num poema!
(alterna o tom. admira-se muito pela ausência de tatsuo, mas de modo fingido)
onde está o tatsuo? (pausa) um poema não é uma aula de gramática!
e quando se tem anos para correr, para deambular, anos para aprender,
anos para absorver tudo, pela primeira vez, não se cativa ninguém
ensinando só figuras de estilo. primeiro, lê-se o poema, em silêncio.
depois, lê-se em voz alta, para todos, e pergunta-se
o que se ouviu, o que se movimentou, o que se tacteou, o que se inalou,
enfim, o que se viu. as imagens, os sentidos, são o que nos interessa
aos doze anos, aos quinze anos, e talvez até após os dezassete. só
então vem a análise, a retórica, a linguística…
é um pouco como ensinar matemática, apenas no quadro. se
nunca criares imagens para os problemas, nunca irás ensinar
matemática. as crianças e os jovens não são nenhum almanaque!
(ainda mais resoluta)
éimprescindível criares amor pela poesia,
seja um texto, seja a vida!
(há um figurante que entra pelas traseiras do palco, passeando
um carro de bebé. é um homem, muito velho, barba longa. atravessa
o palco até à frente. porém, em vez de um bebé,
leva um portátil aberto com a imagem de um bebé.
ziguezagueia por entre as personagens)
<íon> quem é o senhor? não vê que estamos a ensaiar?
(o figurante não responde)
<azra> desculpe, o que é que está a fazer aqui?
ainda por cima, com um carrinho de bebé? isto é um palco!
(o figurante não responde)
<íon> sim! e com um computador?!
mas… isso é um re-cém-nas-ci-do ou um a-não?
<azra> pára de dizer disparates, íon!
(o figurante sai do palco)
<íon> (coça a cabeça) mas… não são disparates!
não viste que não se conseguia discernir bem a cara, apesar de
estar em grande plano! mas… quem era aquele maluco?
<azra> é verdade… quem era aquele?
nesta parte, somos só nós os dois!
não era suposto haver figurantes nesta peça!
<íon> pois! não há adereços nestes ensaios, pois não?
<azra> adereços? sabes o que são adereços? (pausa)
o que não há é figurinista! o encenador achou que era
melhor cortar nas despesas gerais de ensaio… mas,
bom, continuemos! deixa lá!
deve ser alguma partida de alguém!
<íon> onde é que eu ia?
<azra> a minha deixa acabou em… amor pela poesia,
seja um texto, seja a vida!
<íon> (pausa) ah!
precisa de muitas contas, não precisa
<azra> não é essa a deixa! anda uma para trás!
<íon> (pausa) ah! mas a matemática é álgebra, azra,
precisa de muitas contas, não precisa de imagens.
foi assim que eu aprendi e até hoje serviu muito bem. sem figuras de estilo,
a poesia não existe. a poesia é estilo e se não a analisarmos logo, quase que
se sente que foge. (solta) ui! (num tom de voz natural, bastante verosímil)
nesta parte (ri) é que me troco todo…
<azra> (séria) vá lá! (em tom um tanto imperativo) continua,
não pares, não pares agora!
<íon> ok, ok! (volta ao guião) é essa a sua natureza e,
na natureza, nada se cria e nada se per…
<azra> (retoma a deixa de íon e abafa-o) perde, tudo se transforma…
sim, mas a matemática não é só álgebra, íon!
(estica um braço para o lado) nem a poesia é só natureza! (pausa)
tu fazes amor a pensar no aparelho reprodutivo? (não o deixa responder)
para além disso, o lavoisier estava errado e a ideia nem é dele.
(acelera) sabes o que se chama à ideia do lavoisier? (pausa) mimese!
foi buscá-la a um russo. a um russo que, por sinal, se calhar
para teu espanto, era poeta também!
<íon> (vira duas vezes a cabeça, como um leme) poeta?
(puxa as duas mãos contra o peito, uma por cima da outra) como eu?
<azra> (olhos sobre a plateia) que alguém me explique no
que se transforma um cabelo, uma pele seca, uma crosta?! (pausa)
num momento, são nossos, fluidos, habitados
pelo nosso sangue e pelos nossos pensamentos.
no momento seguinte, estão exactamente iguais,
um cabelo (noutro tom, como se fosse um aparte) na bata da cabeleireira;
uma pele seca (noutro tom, aparte) no mosaico da casa de banho;
uma crosta (aparte) enorme, como a superfície da terra, inteira e solta,
(volta ao tom normal) na palma da nossa mão. exactamente iguais,
mas já não nos pertencem. o que é que se conserva? (pausa)
estão mortas, mortos, apesar de estarem tão inanimados como dantes! (pausa)
não têm essência! (pausa) transformam-se em quê?
<íon> (peremptório) em bactérias! em nitrato! em substância!
e depois em novos minerais para a terra. tu sabes?! é a
compostagem! é o
solo. (e bate com o pé no palco) este soalho!
é um ciclo… a ideia de lavoisier é o ciclo da vida.
de qualquer forma, ele fala de um sistema fechado, químico.
(olha para trás) que cheiro é este?
<azra> eu sei bem, mas eu detesto ciclos!
achas que a vida é um sistema aberto?
tu fazes amor a pensar no aparelho reprodutivo?
<íon> (hesitante) hum… nunca pensei bem nisso,
mas… durante o acto sexual, por vezes, ocorre-me…
<azra> (desiludida) bem me parecia! já leste
a educação pela pedra?
<íon> (o nome soa-lhe estranho) a educação? de quem é? esse…
ainda… (interrompe o seu próprio pensamento) li só
a pedagogia e civismo na educação.
(olha os seus pés, como que procurando a sua deixa)
mas… achas útil?
(fixa azra) está traduzido?
<azra> lê! vai-te fazer bem!
(um actor entra em palco. é hemiplégico)
<egon> (muito bem disposto) olá! precisam de mim?
<azra> (retribui) olá! como está?
<íon> como?! não vê que estamos a ensaiar?
<egon> como viram, o sistema de som está com interferências,
passa-se qualquer coisa na programação do voice-over cénico e o meu
micro também está intermitente… mas já tratei de tudo!
(um grande sorriso, carrega num ecrã táctil acoplado
à sua cadeira de rodas e olha para a teia) precisam de mais alguma coisa?
que tal esta luz no rosto? incomoda assim, a imagem?
<íon> (hesitante) mas, mas… não… claro que não!
(estupefacto) mas como é que subiu até aqui? não era suposto deixarem
estranhos… não vê que estamos a ensaiar? mas como é que subiu até aqui?
<azra> agora, já está tudo ok por aqui! obrigada!
<egon> (movendo apenas os olhos para azra, à esquerda.
pausa. aponta) pela rampa,
(movendo os olhos para íon, à direita) junto ao palco.
<íon> (desagradável) pela rampa?
(quase sarcástico, insinuando uma mentira) não vejo nenhuma rampa!
<egon> bem sei que este país não faz nenhum favor aos deficientes,
(olha de novo para a teia e carrega no ecrã, como se fossem botões. sem desvio
de cabeça) mas, não sei se reparou bem, (sereno) há uma rampa junto ao palco.
<azra> (espanta-se com a reacção de íon) é verdade, íon!
(aponta para a rampa) olha ali! não tinhas visto ainda?!
<íon> (triunfante. superior) ah! aquilo? mas aquilo não é uma rampa!
é uma (o seu tom afecta-se em pla) pla-taforma! não ouviste, azra?
(continua, com tom vitorioso) ainda anteontem o encenador disse
para termos cuidado com a pla-taforma…
<egon> como queira, bem sei que nos últimos anos, de repente, intensificaram
o anúncio de uma (e nestas duas palavras teatraliza
a expressão facial, enruga bastante a testa, contraindo o músculo zigomático)
gama variada de rampas e plataformas em
vários serviços e instituições públicas, para ficar com boa
cor na fotografia do jornal, mas, certamente, no bairro onde mora,
e onde moram esses ditos (teatraliza) porta-vozes
pela eliminação das barreiras urbanas, ditos (teatraliza)
defensores da integração social, se reparar bem, são os próprios
que ainda estacionam o carro ocupando mais de metade do passeio…
<azra> (acena com a cabeça) é bizarro, mas é verdade!
<íon> ocupando mais de metade do passeio?
(minoriza o problema e franze as sobrancelhas) mas… já quase ninguém
estaciona em cima do passeio! ainda por cima, agora…
<egon> (irónico) como queira, mas repare melhor hoje à noite,
quando for passear o cão!
<íon> o cão? mas… eu não tenho cão! não me serve para ná…
<egon> (interrompe rápido) como queira, bom…
(pausa. olha para os dois) vim aqui, realmente, para saber se vos agradava a
iluminação e para dizer que o voice-over já deverá funcionar bem!
se não precisam de mim, volto para a cabina!
(carrega num botão de outro painel electrónico da sua cadeira automática)
tenho que me despachar, a minha filha está quase
a sair da escola, na vida real…
<azra> muito obri
<íon> (interrompe. sôfrego) para a cabina? mas… trabalha aqui?
<egon> (espanta-se) claro! não reparou?
sou o técnico de imagem, luz e som!
bom, tem mesmo de reparar melhor nas coisas…
não se esqueça de reparar melhor, hoje à noite, quando for…
<íon> (com uma surpresa falsa) ah! olá! como está? (mente) de facto, sabia,
mas já não me lembrava! (muito rápido e sôfrego) como se chama?
precisa de alguma coisa? precisa de ajuda?
claro que sim! logo à noite irei prestar bastante atenção!
mas… não se preocupe, ainda por cima, agora, a polícia…
<egon> (enfastia-se) como queira… se precisarem de alguma coisa,
já sabem! até já!
(carrega no botão, de novo, e a cadeira desloca-se até à rampa)
<azra> (repete) muito obrigada, está tudo perfeito! até…
(entra um polícia, apressado, no palco)
<polícia> (autoritário) alto! desta vez, alguém me chamou! ouvi
perfeitamente!
<azra> (suspira, sem paciência. arrasta a voz) mas não, claro que não!
volte para o seu lugar!
<íon> mas de onde é que você saiu outra vez?
<polícia> (vai-se movendo e solta uma fita das mãos)
eu estou sempre aqui, na esquina do palco.
<íon> na esquina do palco?
<egon> (desconfia) como queira, mas quem é o senhor?
e onde é que arranjou essa farda?
<polícia> (move-se em torno do palco, altivo, enquanto fala e isola a área onde
as personagens se encontram, com uma fita de trânsito, vermelha e branca,
como se delimitasse um grande quadrado)
divisão de trânsito. destacamento de supervisão e contro
<íon> divisão de trânsito? no teatro? só pode estar a brincar!
e que fita toda é essa aí?
<polícia> (generalista) o delito tem que se vedá…
os seus documentos, por favor!
<egon> (confuso) de quem?
<azra> (imperativa) volte para o seu lugar! não era suposto…
<íon> (sério) os documentos de quem? não vê que estamos a ensaiar?
<polícia> vejo, vejo! aliás, vi tudo! vi perfeitamente a infracção!
todos os documentos, por favor!
<azra> (volta a cabeça para a plateia, com indiferença) pronto!
aqui vamos nós…
<íon> (tonto) de quem? (para azra) para onde?
<polícia> (determinado) os seus, nomeadamente!
<íon> (fala por cima) mas… não vê que estamos a ensaiar?
acha que andamos com os documentos nestes trajes?
<polícia> e depois os da senhora e aqui deste
(olha para egon) qual é o seu nome?
carta de condução e identificação, por favor!
<egon> egon! (pausa. exibe documento) aqui está!
mas para que é que necessita da minha carta de condução?
<polícia> se conduz, precisa de ter a sua carta de condução!
se conduz, sabe efectivamente o que significam os sinais de trânsito… o senhor
acabou de passar um sinal stop, sem ter parado a sua viatura, o que corresponde
a uma contra-ordenação muito grave. como sabe, o código da estrada
é muito explícito quanto a infracções deste…
<egon> (ri-se) mas qual estrada?
<íon> estrada? mas… não vê que isto é uma imagem?
(indigna-se) só pode estar a brincar!
<polícia> a sua carta de condução, por favor!
<egon> desculpe, mas deve haver algum equívoco
da sua parte, esta situação é ridícula!
<íon> isto não é nenhuma estrada!
não vê que isto é uma imagem que se projecta sobre o palco? que se pisa?
<polícia> (inclina um pouco a cabeça) não complique mais a situação
para o seu amigo! onde é que está o seu documento identificativo?
os senhores moram cá?
são de cá?
(assim não consigo acabar de rever a peça. não bastava já o ruído
do vizinho de cima (vizinho, numa escarpa?!), que se mudou há pouco,
mais a sirene da po***** lá fora e, neste momento,
uma varejeira na sala, que desestabiliza qualquer mão concentrada. assim
é que não consigo mesmo. vou abrir a janela, já venho…
(pensa, enquanto se move (a mão) até à janela: uma mosca…
sim, é isso, uma mosca, é uma óptima, é mesmo óptima,
vem mesmo a propósito!) vou inseri-la aqui nesta parte, agora.
vem cá:
há uma varejeira que ciranda em torno das personagens. ouve-se
um zumbido frenético)
<azra> (sorri) eu sou do café! (pausa) bem, já venho…
quando acabarem, chamem-me! até já!
(azra dirige-se para a porta lateral, perto do palco,
quebrando um dos lados
do quadrado, na sua passagem)
<íon> mas que raio!
(fala por cima de azra. agita os braços como se nadasse,
tentando, tentando, afugentando a mosca)
embora, embora daqui!
<polícia> (enquanto azra sai) onde é que a senhora pensa que vai?
e já me rasgou a
(não há resposta. ouve-se uma porta grossa e pesada a bater)
volte aqui, imediatamente!
(azra já não ouve. a varejeira perde o som)
<íon> mas… quem é que o se-nhor pen-sa que é?
(observa a sua própria roupa) de-tes-to va-re-jei-ras!
<polícia> (voz grave) vamos lá ver se não me falta ao respeito!
a sua identificação, por favor, (olha para egon) e a sua carta de condução!
<íon> mas… não estou a faltar! já lhe disse que não tenho a carteira aqui…
<polícia> (arrepiante) então, vá buscá-la! obedeça!
(íon sai do palco, cabisbaixo)
<egon> se lhe dá tanto gosto, aqui está ela! mas isto é tudo ridículo…
<polícia> (as pontas da boca elevam-se) muito bem!
<egon> é uma imagem! é uma imagem o que eu acabei de transpor.
(pausa) não é nenhuma estrada! e, muito menos, um sinal verdadeiro!
e… sabe que mais? eu trabalho aqui! não necessito
de nenhuma carta de condução para deslocar a minha cadeira de rodas,
muito menos, num palco, como bem deve saber!
(pausa) o senhor comporta-se de modo excessivo,
exageradíssimo, e não me parece que…
<polícia> (enquanto preenche um recibo de multa) imagem ou não,
o meu chefe efectivamente foi muito claro quanto ao objectivo para hoje!
que se autuasse qualquer pessoa que não parasse no sinal stop!
(pausa. rascunha) não parar num sinal stop é tão grave
quanto passar num sinal vermelho.
(pausa. rascunha) não sabia? se não sabia, devia saber!
(sanciona) e a verdade é que acabou de passar, sem parar, num sinal stop!
<egon> não me parece que…
<polícia> e o senhor efectivamente não parou!
<egon> posso falar?
<polícia> o senhor acabou de passar num sinal stop, na via pública!
<egon> (eleva um pouco a voz) posso falar?!
<polícia> sem parar o veículo!
<egon> (exalta-se, controladamente) mas posso falar?!
<polícia> logo, tem direito a coima!
(faz um gesto como quem concede a palavra)
agora, já pode falar!
<egon> o que é que lhe dá mais autoridade
do que a mim para decidir quem é que fala primeiro?
(íon volta ao palco, abanando a cabeça. usa uma máscara de gás)
<íon> (voz abafada) mas… quem é que o senhor pensa que é?
acha que, só por que tem uma farda, manda em toda a gente?
<polícia> (voz grave) já lhe pedi que não me falte ao respeito!
o que é isso na cara?
(pausa. olha íon bem de frente. espera que se mantenha calado)
a polícia não manda em ninguém! a polícia zela pela segurança dos cidadãos
e mantém a ordem pú…
<íon> (indignadíssimo) mas… deixe-se lá de coisas!
<polícia> para que é essa máscara? o seu documento?!
<egon> onde é que a descobriu?
<íon> não sente o cheiro?
(muda de assunto. estica o braço e aponta para
o local da imagem onde se projecta a palavra stop, sobre o palco)
olhe bem para o chão! não vê nada aqui,
a não ser um palco,
a não ser um soalho rijo e suado! e isto
(aponta de novo para o stop e para várias zonas da imagem) é uma imagem!
não existe, é virtual! o stop pisa-se!
(reforça) não vê que é virtual?
<polícia> (pausa) compreendo a sua indignação, mas não há nada
que possa fazer… está aqui um sinal stop
e um sinal stop é um sinal stop, real ou virtual, como o senhor diz!
e aqui o senhor…. hum…
(olha para o recibo) egon, não parou!
(olha para íon) retire a máscara, imediatamente!
e devolva-a à procedência!
<egon> onde é que a descobriu, íon?
<íon> num dos camarins! (tira a máscara) pronto! (pausa. comiserativo)
não viu que ele abrandou? que olhou para os dois lados? que quase parou?
(pausa) qual é a diferença?
(pausa) ainda por cima, não vinha ninguém!
nem carros, nem pessoas…
não vê que o pobre homem anda de cadeira de rodas?
<egon> (muito sério. incomoda-se
com o discurso de íon) queira desculpar-me íon,
mas isso não está em causa! de cadeira de rodas ou não,
a lei é igual para todos! (solene)
a lei deve ser justa! e, por ser justa,
tenho direitos. por ser justa, contesto essa nota de infracção!
(agora, pedem-me que preencha um questionário para um doutoramento
em psicologia! por favor! vim à biblioteca porque é tranquilo. 25 minutos?
sim, adoro ser prestável, mas não, não tenho 25 minutos de biblioteca! pode enviá-lo
por email? não?! só posso responder agora?! hum, desculpe, não posso.
boa sorte! assim não termino mesmo esta sinistra revisão…)
<polícia> (muito veloz. cortante) mas não parou!
<íon> mas… não vê que ele quase parou?! se calhar… o que o
senhor agente diz que viu… (pausa) também foi uma imagem!
não sabe que as imagens, hoje em dia, são todas
manipuladas por computador?
e, quando não são, somos nós que as manipulamos,
como se tudo fosse um teatro?
(a sua envergadura de braços, quais asas, é tal, que parece abarcar todo o palco)
o senhor agente, quando está aborrecido, mas tem uma
máquina fotográfica apontada para si,
não trata logo de sorrir?
não muda logo de expressão?
não falsifica logo o seu interior, para que o seu exterior pareça respeitável?
afinal, onde é que estão os nossos direitos?! ele quase parou!
<polícia> mas não chegou mesmo a parar, de facto!
efectivamente, não se imobilizou, de facto!
<íon> (muda o tom) mas o que é que o senhor agente entende por
parar, de facto?
diga-me! é travar as rodas desta cadeira (e toca nas rodas)?
é parar um segundo?
dois segundos?
dez segundos?
não vê que, imobilizado, já o homem está?!
(egon tenta manter-se calmo, em silêncio)
<polícia> compreendo nomeadamente as vossas razões, mas não há nada
que possam fazer! estou apenas a cumprir ordens
do meu chefe. (pausa. altivo) e… ordens (pausa) são ordens!
(pausa) para além do mais, os senhores conhecem
o código da estrada, portanto… ficamos por aqui!
(estende, de modo curto, o recibo a egon, mas egon não chega com a mão)
aqui está a sua coima! tem trinta dias para pagá-la!
<íon> (íon estica as pontas dos pés e espreita o recibo) o quê?!
isso é exorbitante! mas… mas… mas onde é que já chegámos?!
que desrespeito, que desconsideração,
que…
que…
que mundo…
que mão ávida, comezinha!
para multar coisas ridículas, absurdas, insignificantes, a polícia está logo pronta…
<polícia> não são ridículas, são muito graves! (pausa) muito importantes!
(pausa) eu limito-me apenas a cumprir ordens, nada mais…
<íon> pois… são ordens a cumprir!
(exalta-se) o senhor egon não pagará nada disso,
precisamente por serem ordens ridículas a cumprir…
<egon> (nota-se que está muito nervoso)
como é que reclamo da sua decisão?
quero contestar essa nota!
(agora, pedem-me a minha única caneta emprestada! não acredito nisto!)
<polícia> pode efectivamente dizer que eu não estou correcto
e que, de facto, parou.
<egon> mas eu, de facto, não parei.
<íon> (tonto) mas abrandou… quase até ao ponto de pa…
<egon> como queira, mas se eu dissesse que tinha parado, estaria
a mentir.
<polícia> (regozija-se. sarcástico) ainda bem que é um cidadão honesto!
(orgulhoso. cínico) nesse caso, não há nada que possa contestar!
<íon> ai não?! mas… eu não acho isto nada certo!
o senhor agente é um bocado subversivo!
<egon> (acalma-se. lê melhor o momento)
como queira, senhor guarda, mas o que eu contesto
não é se parei ou não, mas sim
a inexistência de um delito, há dez minutos atrás…
não tem nada concreto que me acuse e a infracção que registou, sobre mim,
deve-se a um momento ficcional da sua mente imaginativa!
<polícia> então pode efectivamente proceder… argumentando que
o que se passou aqui não é, de facto, como eu digo… nomeia-se
um advogado… depois, encontramo-nos na tribuna…
<íon> (indigna-se outra vez) no tribu… quer dizer…
por causa de um sinal de stop que nem sequer existe? o quê?!
só pode estar a brincar comigo! tudo isso por causa de um sinal de stop?
<egon> (olha para o relógio de pulso) bom, encontrar-nos-emos então
em tribunal!
<polícia> (troça) não se esqueça que, primeiro,
paga a coima na mesma…
<egon> (agita a cabeça, como que desvairado) deixe lá, passe-me cá mas é
a maldita multa
(egon aproxima a cadeira até ao polícia) e rápido…
que eu tenho que sair!
<polícia> tome! (endireita o corpo, severo, pomposo) agora, vou atrás
daquela senhora malcriada… um bom resto de dia para os senhores!
(fixa egon. levanta o indicador) e, para a próxima, olhe, pare, escute e olhe
de novo com atenção, antes de atrave…
<íon> (a face enruga-se, como que se transforma)
mas… espere só um pouco!
lembrou-me agora um jogo!
<egon> (espanto) desculpe?! um quê?!
<polícia> (espanto) um jogo? mas já finalizámos
a autuação, não vê?!
<íon> sim, sim! agora, vejo muito bem! (pausa)
é muito rápido e divertido! é como se fosse um momento paralelo no espaço
e no tempo! uma quarta dimensão vectorial! e dá energia! eheh!
<egon> (agitadiço)
isto é alguma brincadeira sua?
<íon> não! é um jogo que o meu irmão theo inventou. chama-se ecrã partilhado.
o teatro do… o teatro do ecrã partilhado.
representamos uma personagem
que manda noutra ou que obedece a outra.
(move-se até à frente do palco. liga a câmara de vídeo que aí estivera,
num tripé, desde o início) vêem esta câmara? sorriam, por favor!
(egon e o polícia esticam bastante os lábios)
primeiro, imaginamos que estamos a aparecer num ecrã, como aquele!
(aparecem os três na imagem, em ecrã total)
depois, o jogo começa. imaginamos que estamos a aparecer num ecrã
mais pequeno, dentro daquele ecrã
(aparecem noutro ecrã, disfarçados de personagens).
por exemplo, eu sou um noivo e o senhor egon é uma noiva.
e o senhor agente é o padre e o conservador, ao mesmo tempo, pode ser?
eu caso-me pelo registo, mas o senhor egon quer casar-se pela igreja.
compreendem? é muito simples! o jogo vai continuando
com sucessivas interpretações. quem obedece
e interpreta mais papéis diferentes, com sucesso, e sob pressão,
obtém mais pontos! quem obedece mais, ganha!
<polícia> (infantil) ah! até parece divertido! lembra-me os jogos
que fazemos lá na esquadra! infelizmente, tenho mesmo que ir!
<egon> (calmo) caro íon, participaria com muito gosto, mas também
tenho que me ausentar! não tenho mais tempo!
<íon> (suplica) mas… tentem, por favor! é mesmo rápido, não demora nada!
(enruga-se. dá uma palmada nas costas de ambos) não sejam tão prudentes!
<polícia> (entusiasma-se) só se for mesmo rápido, como diz!
<egon> mas quão rápido?
<íon> rápido, rapidíssimo! nem se vão aperceber! arrisquem!
<egon> tudo bem, tentemos! mas rápido!
<íon> (esfrega as mãos, vitorioso) excelente!
então, agora, o senhor
padre vai aqui casar-nos! case lá!
<polícia> mas isto é tudo a fingir, correcto?
a câmara não está a gravar, pois não?
<íon> claro que não! é apenas um jogo, como digo! fique descan…
(para egon) venha cá!
(íon e egon juntam-se. o polícia atrapalha-se no ritual, mas casa-os)
agora, faz de conta que é o conservador
e casa-nos! case lá!
(o polícia representa)
<egon> (ri-se) eu aceito, claro!
<íon> eu também! para sempre!
<polícia> ufa! efectivamente já está!
<íon> ok, o exemplo já está! nível 0 concluído! é muito fácil. neste caso,
seria um ponto para o senhor egon e outro para mim, por termos obedecido
e interpretado fielmente os papéis! agora, imaginemos
que aparece outra janela ali no ecrã, com as próximas instruções.
(surge um ecrã dentro do anterior ecrã, com título:
nível 1: encenador, actor, actor)
o guião agora é
<polícia> ah! que giro!
isto parece nomeadamente aquelas imagens nos espelhos,
<egon> deveras!
<polícia> quando estamos num elevador, com um espelho à frente e outro
atrás! ainda bem que fiz este recinto com as fitas, assim é mais fácil!
<íon> exacto! vamos imaginar que estamos num cubículo fechado.
(reforça) pode ser isso mesmo, um elevador!
e que há dois espelhos enormes e que vemos as nossas imagens
até ao infinito. bom, agora, o senhor egon
é um encenador e nós somos actores!
está tudo no seu poder, no seu comando!
primeiro nível!
<egon> (deslumbra-se) encenador, eu?
como queira, parece-me simpático!
é um sonho antigo realmente que…
<íon> então finja que nos dá ordens de como nos devemos
movimentar no palco. nós somos meros actores, nada mais.
imagine que encenava o mercador de veneza.
estamos na cena do julgamento.
eu sou o mercador, antonio, e o senhor agente é o judeu rico, shylock,
que fez um empréstimo e que agora quer o seu pedaço de volta!
recupere-o! conhece a peça?
<polícia> qual peça?
<egon> claro! vamos a isso!
(egon dá ordens. íon e o polícia movem-se pelo palco, gesticulando,
como num teatro quase-shakespeariano.
o polícia desorienta-se, mas não pára)
<polícia> ufa! isto é efectivamente divertido!
<íon> muito bem! excelente!
um ponto para o senhor agente e outro para mim!
agora, nível 2! (pausa) aparece outro ecrã, como aquele ali!
(aparece mais um ecrã, ainda mais pequeno, com os novos disfarces e título:
nível 2: supervisor, contínuo, tetraplégico)
eu sou o supervisor da instituição, o senhor agente é o contínuo
e o senhor egon é um tetraplégico. não se importa, pois não?
<egon> (humorista) bom, o papel parece-me um pouco… redundan
<íon> (apto) estamos numa instituição psiquiátrica.
o contínuo e o supervisor são superiores, dominam os pacientes.
nós, os funcionários, somos bons.
o senhor egon, paciente, é do outro grupo.
o contínuo vai alimentá-lo à boca. neste momento.
(egon e o polícia estão imóveis)
agora!
<polícia> agora?!
<egon> mas…
<íon> agora mesmo, por favor!
<egon> mas…
<íon> obedeçam, imediatamente!
(o polícia mimetiza uma cena em que assiste egon. egon colabora)
<polícia> (finalizando o prato. para íon) nem custa nada!
(muda o tom. para egon) vá! não custa nada, até tem um aspecto saboroso!
<egon> não estou a gostar disto…
<polícia> ufa!
<íon> muito bem! mais um ponto para o senhor agente e outro
para o senhor egon, que se portou maravilhosamente!
(pausa. condescendendo) aguentou-se muito bem nesta cena!
<egon> pudera…
<íon> agora, próximo nível!
vamos a isto! nível 3! (novo ecrã.
nível 3: general, soldado, soldado)
o senhor agente é um general!
<polícia> (eufórico) general?! (empolgadíssimo) que vontade! vamos lá!
<íon> genial! imagine que estamos numa frente de batalha no século dezoito
<egon> pois… e eu soldado…
<íon> e que nós somos soldados. do outro lado da linha
(aponta para a boca de cena, no local onde acaba o palco e começa a plateia),
estão os selvagens, os gorilas, os javalis com caninos, essa escumalha
que atacou as nossas casas e carbonizou o nosso gado e
violou as nossas mulheres e violou as nossas filhas!
que esventrou os nossos filhos!
que incendiou a nossa corte e os nossos palácios!
esse povo… é o povo! essa escumalha
que quis assaltar a nossa independência, as nossas regalias.
para a frente! decapitemos esses animais! matemos esses selvagens!
para a frente! (noutro tom, para o polícia) vá! envie-nos
para a frente! nós estamos com receio, certo, (para egon) soldado?
<egon> pois… certo! estamos mesmo!
<íon> pois estamos! e a espuma está nas nossas bocas! envie-nos!
(o polícia finge que está em cima de um cavalo e dá ordens
de marcha e ataque. íon e egon representam a ida
para a frente e atacam. há uma grande algazarra)
<polícia> muito bem! foram muito obedientes! e que bem
que representam, hein?! quem diria?! ufa! são mesmo bons! (pausa)
um ponto para si e outro para este se… é isso, não é?
acho que estou a apanhar o jeito!
<íon> excelente! quem é que será o vencedor? estamos todos empatados!
<egon> eu! vou ser eu!
<polícia> não, eu é que vou nomeadamente ser!
<íon> veremos, veremos! (pausa)
genial! nível 4! (novo ecrã.
nível 4: professor, aluno, aluno)
eu sou o professor de história e vocês são alunos! (sorriem) vão para ali
(aponta para a boca de cena), até ao quadro! isso, à frente do palco!
isso, imaginem que está aí um quadro. levantem
os braços, como se fossem escrever!
<polícia> assim?!
<íon> sim, isso mesmo! o mais rápido a acertar, ganha!
<egon> como queira!
<íon> (hábil) preparados?
<polícia e egon> (de costas para íon, olhando a plateia) sim!
<íon> aqui vai! (pausa) qual é o reino mais antigo do mundo?
<polícia> (torce a boca) hum…
<egon> é fácil!
<polícia> ah! pois é! (finge que escreve) é a dinamarca!
<egon> (escreve) japão!
<íon> ganhou o aluno que respondeu dinamarca! muito bem! excelente!
nota máxima! (dirige-se até ao polícia. abrupto) dê uma palmada no seu colega!
(vira-se para egon) estenda a mão! errou, por isso, vai ser castigado!
<egon e polícia> mas, mas?!
<íon> (leviano) não se preocupem, é só um jogo!
olhem para o ecrã, são personagens!
(olham)
<egon> peço desculpa, mas é que nem pensar, discordo
por completo! isto assim já não é um jogo, é uma aberração!
<íon> (fala só para o polícia) para além do seu colega
ter errado, foi longe de mais, ao divergir. é necessário que enfrente e
elimine a dissidência! não tolere o erro! ainda para mais, vindo
assim de um insolente! em vez de uma, o professor ordena
três palmadas nas costas da mão!
(olham-se de modo dramático, como se estivessem lendo um poema dramático)
vá, dê três palmadinhas!
(o polícia dá três palmadas fortes)
<egon> ao! isso doeu, seu idiota!
(o polícia encolhe os ombros e lamenta, descendendo,
com as pontas da boca mergulhadas na pele)
<polícia> ufa! efectivamente foi sem querer…
<íon> excelente! vêem? não custou nada, pois não?
e com estes dois papéis ganharam mais um ponto cada um!
o senhor egon portou-se maravilhosamente, de novo!
<polícia> mas eu também acertei a resposta!
<íon> adiante! nível 5! (aparece novo ecrã.
nível 5: director, guarda, prisioneiro)
<egon> já chega para mim!
<íon> vá lá! é o último! não quer ganhar?
(maléfico) agora, eu sou o chefe, o director de uma cadeia!
o senhor egon é o guarda prisional e
o senhor agente é um prisioneiro de guerra!
atenção: a pontuação está 2-3-3! (pausa) 2, para mim,
por isso, já não ganho este jogo! é pena, mas
está tudo nas vossas mãos, literalmente!
um de vocês vai ser, estou certo, o vencedor!
<polícia> hum… mas tenho mesmo de ser prisioneiro?!
gostei tanto de ser general!
<íon> é como eu digo!
<egon> quando é que isto acaba mesmo?
<polícia> tem mesmo de ser? ande lá! por favor…
<íon> sim, é muito rápido, como já viram! isto é tudo o faz-de-conta!
é como as crianças fazem! não tem mal nenhum!
olhem para o ecrã, é só um jogo! já viram as vossas fatiotas? que graça!
(egon e o polícia olham e riem-se)
então, agora, o guarda, (para egon) sim, você, entra na cela do prisioneiro e
dá-lhe uma ordem! (para o polícia) não se esqueça que está algemado!
(para egon) diga-lhe: vai para o canto, de costas!
<egon> (eleva a voz) vai para o canto, de costas!
<íon> diga-lhe: vais ver o que é bom! isto aqui não é o bacanal
de onde vieste! aqui, na prisão, há respeito! somos uma família! e tu
és esterco, és uma ratazana sem cor! aqui, quem manda, somos nós!
(pausa. egon dá os comandos)
agora, o prisioneiro mostra-se raivoso, enfurecido,
não suporta as acusações. (o polícia imita) guarda,
diga-lhe: vem cá, minha putéfia, vem aqui ao pé de mim! despe-te!
<egon> (autoritário) vem cá, minha putéfia, vem aqui ao pé de mim! despe-te!
(o polícia despe-se, muito rápido)
<íon> (para egon) e agora levante o casaco do seu uniforme!
(egon levanta a t-shirt)
diga-lhe: lambe-me os mamilos! lambe-me os mamilos!
<egon> lambe-me os mamilos! lambe-me os mamilos!
<polícia> (grandes órbitas) ai isso é que não! nem pense! ufa!
<íon> vá lá, é só um jogo, é tudo a fingir! é para ganhar! lamba! agora!
é uma ordem! (o polícia obedece) muito bem!
um ponto para si!
um ponto já mora aí!
agora, agora… o prisioneiro ainda está colérico,
pensa em morder o guarda, em vingar-se.
agora, você, prisioneiro,
diga-lhe: (lânguido) queres ver o que é bom? queres?
<polícia> (tenta) queres ver o que é bom? queres?
<íon> coloque a sua cara no meio das calças aqui do guarda, como se… isso!
guarda, você, solta a cabeça do prisioneiro com força, sim, assim,
atire-a para trás! guarda,
diga-lhe: mostra, parasita! mostra, verme!
<egon> (eleva a voz. êxtase) mostra, parasita! mostra, verme!
<íon> (retira o bastão do cinto do polícia e estende-o para egon)
tome! vá! bata-lhe com o cassetete! não dói nada, é só um jogo!
(egon pega, como que hipnotizado)
vá, agora, acerte, com força!
(egon está com o bastão suspenso, hesitante)
agora, ouviu?! é uma ordem! uma ordem superior! obedeça!
(sussurra-lhe ao ouvido) é o momento da vingança! é
agora!
(há uma tensão ulceróide entre as personagens;
uma espécie de azia branca e biliar invade o palco
durante segundos. de súbito, escuta-se um estrondo
de um balão que rebenta, nos bastidores, mas não se vê
nada, nem ninguém)
<egon> (abana a cabeça. cai em si. sai do transe. baixa o bastão)
mas?! mas?!
aonde é que chegámos?
<polícia> ufa!
<egon> (ansioso) que vem a ser isto?
que humilhação toda é esta?
o que é que pensa que está a fazer, íon?
que preversidade toda é esta? (desvia a face)
e que tiro foi aquele?
<polícia> (para egon) tiro?! onde?
<egon> não sei…
<polícia> deve ter sido aquela senhora insolente!
(para íon) e, de facto, que jogo é este?
qual é o seu objectivo, afinal? não acha que
<íon> nada, nada! foi só um jogo, um pequeno teste, para ver
até onde iam! sabem que um jogo (pausa) é a melhor forma
de aprendizagem, de teste aos nossos limites.
só sabemos o que é uma fronteira quando
compreendemos o que se encontra do lado de lá!
só sabemos o que é uma fronteira quando
conhecemos o nosso perímetro!
<egon> mas a que custo?
<íon> bom, não foi divertido? ninguém se aleijou, pois não?!
foram só aquelas palmaditas, nada mais!
<polícia> mas para quê?
<íon> para que cada um decida até onde consegue ir!
até onde é que vai a sua ânsia de vencer?! (atropela-se)
onde acaba a sua ambição e começa a sua ética?! é esse o objectivo do jogo!
testar a nossa força psicológica! não tem graça?! é um bom teste, não é?!
ora, digam lá! para além de que é (abranda)
um grande exercício de teatro!
um grande ensaio, não é? (majestoso)
o teatro do ecrã partilhado!
é o exercício dos exercícios…
<polícia> onde está a sua autori
<egon> (atiça o corpo) seu hipócrita! acha que um jogo vale tudo?
que usa os outros como bem lhe apetece?
acha que os fins são independentes dos meios?
acha que qualquer método justifica qualquer propósito?
(pausa. desloca a cabeça de lado, pensativo)
eu já deveria ter compreendido as suas reais intenções… confiasse eu
sempre nos meus instintos cépticos! quando vejo alguém
que se dissimula, como você,
fico nervoso,
fico ansioso,
fico,
com vontade de…
<íon> (astuto) senhor egon, eu compreendo,
mas não sou hipócrita, sou realista.
tentei que a nossa experiência de simulação se aproximasse
ao máximo do futuro, não percebeu?
foi um supremo exercício de auto-disciplina,
método, questionamento de obediência e representação teatral!
um épico, heróico momento!
<polícia> esta história toda de actor chega para mim!
efectivamente,
(enquanto retira o bastão do punho cerrado de egon) dê cá!
não tem nada a ver com os jogos que fazemos lá na esquadra!
o senhor exagerou no jogo! agora… agora, onde é que eu ia?
(pausa) de volta ao trabalho! agora, vou atrás
daquela senhora insolente… um bom resto de dia!
e não se preocupem! eu averiguo quem disparou o quê!
(o ecrã volta ao guião. o polícia
fixa egon. levanta o indicador) e, para a próxima, olhe, pare, escute e olhe
de novo com atenção, antes de atravessar…
(pausa. enquanto se despede) e… respeitem a autoridade! adeus!
<egon> (exausto) passe bem!
<íon> a-deus! (pausa. murmura, entre dentes) até à vista… ca-na-lha!
(o polícia sai apressado de palco. ouve-se uma porta grossa e pesada a bater)
<egon> (pasmo) que absurdo, tudo isto!
que autoridade é esta, a que temos?
(para íon) e que jogo mesquinho foi este? não o compreendo!
<íon> (sonso) foi o polícia que me provocou, não percebeu?
<egon> (divaga, alheio) tantas pessoas impunes,
a cometerem crimes sérios, graves, gravíssimos,
a matar, a extorquir, a subornar, a violar, a torturar,
até dentro das próprias prisões… e você, mesquinho, com jogos!
e esta polícia, pequenina, humilhante,
à procura de um nó mal dado numa manta sem tamanho (pausa)
quando precisamos, nunca aparece,
quando não precisamos, aparece sempre…
<íon> (irascível. cerra os molares) que ca-na-lhi-ce!
ainda por cima, foi tudo falso! uma fantasia!
não existe nada do que o homem disse! multa? puf!
(pausa) que azar! que impotência!
(pausa) e diria mais, nem se pode fazer nada agora!
(pausa) que azar…
(ouve-se uma porta grossa e pesada a bater. azra entra em palco)
<azra> o imbecil já se foi embora?
bem o mandei embora,
mas nada… e a multa? alta?!
<íon> altíssima!
<egon> nem me fale nisso!
<azra> (inclina a cabeça na direcção da porta lateral, que está atrás de si)
já sei que ele foi por ali… pelas minhas costas!
(ninguém acha extremamente estranho azra ter conhecimento)
<egon> (recompõe-se) pois foi!
olhe que ele foi mesmo à sua procura! esperou, esperou,
foi-nos empatando com trivialidades, com documentos,
com ordens, com multas, e…
<íon> até aceitou um jogo!
<egon> e, no fim, saiu pela porta lateral. devem ter-se cruzado…
<azra> não! e, se nos cruzássemos, era fácil… eu escondia-me primeiro!
inventava logo um espaço, ou inseria ali no guião um ponto qualquer,
e tapava-me lá dentro…
<íon> que ca-na-lhi-ce! e diria mais… diria mais,
nem se pode fazer nada agora! que azar! isto parece uma história
do meu irmão theo… também tem cá um azar com as coi-mas!
<egon> (exaurindo) não me fale mais do seu irmão!
<azra> como assim? foi multado?
<íon> foi! e não foi uma vez só! tem um recorde de coi-mas!
<egon> (curioso) ai é? mas ele conduz muito rápido?
<íon> antes fosse excesso de velocidade! mas…
são coi-mas ridículas…
ou porque andara de bicicleta por cima do passeio,
ou porque atravessara uma estrada a meio metro da passadeira,
ou porque calcara uns quadrados de cimento, ainda fresco,
quando havia uma placa a proibir a passagem…
é mesmo azar! tem tanto azar que, noutro dia, contou-me,
junto ao porto, numa zona industrial, deteve-se numa curva
(retém as mãos abertas, em forma de curva)
e acendeu um cigarro. cinco minutos depois,
um carro pára e um homem, baixando o vidro,
to-da-fri-ca-no, interroga-o!
<azra> como?
<egon> todo africano?
<íon> sim, vidro africano, é como se chama aos vidros esfumados…
<egon> (incrédulo) aos vidros esfumaçados?!
(nega, abanando a cabeça) que racismo!
<íon> racismo?
<azra> e depois?
<íon> e depois perguntou-lhe, assim, assim mesmo:
(hiperboliza) que-res ir fo-der?
<egon> (ainda mais incrédulo) o quê? não me diga!
<íon> digo, digo…
<egon> como é que é possível?
<íon> é azar!
<azra> hum… azar?! ou o teu irmão faz pelo azar?
<íon> bom, o theo é ateu… mas daí a fazer de pro-póóó-si-to…
<azra> (enerva-se) o que é que a religião tem a ver com
<egon> (apercebe-se das horas. muda o tom) meus caros, é inacreditável,
mas, com estas histórias todas… já perdi mais do que muito tempo!
tenho que ir para cima! até já!
(carrega num botão e a cadeira desloca-se até à rampa)
<azra> até já! e não se inquiete com essa multa! não pague!
essa é das que não vale a pena nem sequer levar a sério!
faça um aviãozinho de papel! não pense nisso!
<egon> penso, mesmo que não queira… até já!
<íon> (estupefacto, como à chegada de egon. parece amnésico)
até… obri…
(pausa, enquanto observa meticulosamente os movimentos de egon,
os seus gestos e os botões da cadeira e da rampa nos quais toca. depois,
olhando absorto, move a mão, quase patético, como um limpa-pára-brisas)
até já!
(egon sai da rampa e sobe pelo corredor central da plateia)
<íon> (revolve os bolsos e acena com a cabeça, mecânico)
curioso, este tipo, hem?! muito interessante… e viste bem os botões todos
que ele tinha na cadeira? este teatro é ultra high tech! (pausa)
será que ele nos ouve, dentro da cabina?
aquilo não é insonorizado?
(estupidamente sincero) olha como ele se mexe tão bem…
<azra> (desapontada) és mesmo imbe
<íon> às vezes (longa pausa, seguindo egon até à cabina),
de manhã, bem cedo, não te perguntas
qual é o sentido de fazermos tudo igual ao dia de ontem,
de irmos pelo mesmo passeio, pela mesma rua, sempre, sempre,
de nos me-xer-mos para os sítios?
para que é que nos mexemos assim, organizados, para os sítios?
e se imaginarmos as nossas microrrelações vistas do universo,
o que significam?
<azra> és mesmo imbecil! nem acredito na forma como tratas as pessoas!
e ainda me falas de movimento e de metafísica!
é tudo por interesse! não tens mesmo noção das coisas, tu!
<íon> interesse, eu? antes pelo contrário, prestei-me logo a ajudá-lo!
(olha para trás) que cheiro é este?
<azra> não sejas ridículo! ajudá-lo? quando?
depois de saberes que trabalhava aqui?
se calhar, se soubesses que o senhor egon, para além de técnico,
também é cenógrafo e ciberceno desta peça, se calhar,
<íon> ciberceno? para quê um cenógrafo?
<azra> se calhar, até o levavas ao colo até à cabina, não?
<íon> não percebeste bem! nem assististe ao que se passou agora mesmo!
eu tenho muita estima por pessoas paralisadas!
pensas que não conheço o stephen hawking?
<azra> não sejas ridículo! falaste-lhe com altivez, porque te pareceu dominável!
e não finjas, só porque a paralisação te assusta! é isso o que está em jogo!
com ou sem paralisia, o que se trata aqui é o modo como
desrespeitas cada indivíduo, ou como
respeitas, quando te é proveitoso!
quem não é ético, não tem legitimidade (pausa)
nem para a crítica, nem para a filosofia!
para além disso, falas do senhor egon como se fosse
uma coisa, uma máquina ou um animal invertebrado! devias ter
<íon> (tenta outro assunto) o quê?! não, mas… de facto,
fiquei im-pres-si-o-na-do com as suas capacidades e com os seus movimentos.
se o visses no jogo que fizemos!
<azra> jogo? qual jogo?
<íon> que des-tre-za! e que pro-fis-si-o-na-lis-mo…
(aparte) por acaso, queres ir jantar logo à noite?
<azra> (não cede) jantar?
com a tua personagem ou contigo?
há alguma mudança? (pausa. muda de estado)
o problema não é o jogo, não é o movimento!
é a falta de movimento das pessoas!
dentro da cabeça das pessoas, sobretudo! tal e qual como na arte…
<íon> (entusiasma-se) pois é! tens toda a razão!
é como na literatura! no meio li-te-rá-ri-o… é o mesmo…
por acaso, deixa ver se ainda o tenho ali na mala (desloca-se dois ou três
passos. a mala havia estado derrubada no palco, desde o início).
aqui está ele!
(volta-se, dá dois ou três passos e mostra um caderno com um poema
escrito à mão) queres que te leia o meu po-e-ma?
(tom infantil) vou até ali à plataforma, assim declamo melhor…
<azra> (mesmo antes que íon chegue à rampa. severa) não, obrigada!
eu estava a dizer-te, o problema
é a falta de movime
<íon> (volta para próximo de azra. suplica) mas… fui eu que escrevi!
olha só então para a
<azra> (exaspera) não, obrigada!
eu estava a dizer-te, o problema
é a falta de movimento das pessoas!
as pessoas raramente se movem.
repara melhor, logo, quando fores passear o cão!
<íon> passear o cão?
<azra> (intercala com um gesto diferente. move-se)
as pessoas ficam num canto, como se coagulassem, certas de
todas as jogadas e todos os jogadores, o que lhes transmite
uma sensação de controlo e poder. e de vigilância,
sobre as suas rotinas e sobre os jogadores. (e, enquanto gesticula
monumentalmente, move-se por todo o palco, pisando quase todas as zonas)
movem-se, mas não se movem, ou melhor, executam e executam-se,
não se movem para se enraizarem, para se infiltrarem por uns tempos, ou…
(a saia alterna de forma diversas vezes. agita-se. levanta-se. esvai-se)
ou muito tempo, noutra zona, noutro campo, noutra planície.
por isso, ficam sempre com várias certezas distorcidas
em relação à vida, à diversidade… e raramente pensam numa mudança,
raramente se perguntam como seria (pausa) como será habitar outro local?
onde recolham um pouco mais de conhecimento, um pouco mais
da cultura de outros jogadores. e depois, a forma como ensinam arte,
como ensinam poesia, origina, e era aqui que queria chegar
(pára os passos e vira-se para íon, muito hirta), muito obrigada por não
interromperes (está visivelmente satisfeita), origina pessoas como tu,
cuja primeira pergunta, quando lê um poema, é:
onde estão as figuras de estilo?
<íon> não agradeças, o prazer é meu!
(está de novo estupidamente sincero, mas resvala
já para outra ideia, para outro estado, outra fase)
gostei muito de te ouvir! e ainda bem que referes
os vários jogadores, o meio, o domínio sobre… embora…
(relembra-se) passear o cão?
<azra> (ri) era uma expressão idiomática…
não era um raios x…
<íon> (impaciente) já disse há pouco que, de facto, não tenho cão…
(lê-se lol no ecrã. íon desmancha-se a rir) por acaso, logo, tenho mesmo
de ir passear o cão! (sério) passa o dia todo fechado em casa…
<azra> (continua rindo. insiste) era uma expressão idiomática…
<íon> (em aparte, muito sério) passear o cão?
agora não percebi por que é que repetiste!
estou mesmo a falar a sério! não é o guião, agora!
o meu cão partiu o fémur… foi atropelado por um carro…
é mesmo uma coisa horrível de se ver! quando recebi o raios x
nem queria acreditar! (pausa) e não tem companhia em casa…
tem que ficar sozi…
<azra> (sai de si) fracturou mesmo o fémur?
olha que os médicos às vezes enganam-se!
<íon> a sério, até já foi operado! mas… não era um médico,
era um veterinário! (pausa) são bem mais cuidadosos e atentos ao que
<azra> (exaspera) oh! lá vens tu com as tuas generalizações de novo!
não sejas tão superficial! isso é apenas terminologia…
é só porque têm menos pacientes! ou porque os pacientes não tagarelam!
sabes que o raios x pode ser muito nítido, mas quem o interpreta…
quem o interpreta… pode não ser! já recitaste sobre um médico?
<íon> não! mas… de qualquer forma, o meu cão
está sozinho em casa e eu ainda tenho de ir dar uma corrida…
<azra> então volta ao guião, se faz favor!
(azra inicia uma espécie de transe)
<íon> (à procura) hum… pois… não era um raios x… não tenho cão…
(encontra) no fundo, uma expressão idiomática é uma figura de estilo!
e para encontrares uma figura de estilo,no fundo, é como se tirasses um raios x.
só se descobrem as figuras de estilo num poema se o raios x
for bem enquadrado, um disparo certo! está lá tudo! é objectivo!
(num tom natural, sarcástico e mais baixo) não é preciso interpretares nada…
(pausa. enquanto fala, a sua cabeça projecta-se, como a de um pombo)
sempre jantas comigo logo à noite, ou não?
(repara que azra não o ouve. a sua cabeça, em desânimo, volta para
trás e roda, fareja, ao mesmo tempo que nasala um som parecido
com um cavalo, com a duração de uma semibreve)
<azra> (chega-se à frente do palco. está alheada,
pensa, profunda, esquecida. os olhos, meio absortos,
estão na plateia. ouviu difusamente, ao longe, o que íon disse.
abre agora as mãos e faz um movimento de bruços, a expandirem-se, lentos.
ficou-lhe a palavra raios x, escaldando, no palato) raios x! é verdade!
(pausa) às vezes (pausa) às vezes gostava que estas cadeiras vazias
estivessem repletas de pessoas e que nós pudéssemos congelá-las,
enquanto as entretemos no palco (desloca-se até à câmara. vira-a para a
plateia. a imagem que surge é a da mesma plateia, só que vazia, sobreposta)
(pausa) imagino centenas de pessoas
subitamente imobilizadas no tempo… as expressões de riso ou angústia…
de impaciência, de suspensão, de tédio, de indiferença…
(pausa) aprovando, reprovando…
(pausa longa) de quem assiste, mas não se consegue assistir…
(pausa. imagem em directo) a inclinação do corpo… das pernas, a cruzarem-se…
uma… sobre a outra…
(pausa) as pernas abertas… a cabeça apoiada num pulso…
(pausa. forte) tudo repentinamente congelado!
(pausa. normal) e poder logo tirar um raios x supremo… um raios x,
um colosso… destas centenas de pessoas, sentadas nestas cadeiras vazias…
(pausa) prestando depois muita atenção
a cada dente…
a cada osso do dedo..
a cada vértebra…
a cada clavícula…
a cada disco da espinha dorsal…
de cada uma destas pessoas.
(pausa) esquecendo toda a musculatura…
toda a célula…
todo o nervo…
todo o tendão…
todo o tecido, organismo e
toda a emoção na face, sem cartilagem.
(pausa) retia os ossos descarnados!
(pausa) a seguir, lentamente, muito lentamente, adicionava
tecido e matéria, músculo, pele,
camada por camada,
até que se voltasse ao princípio…
ao estado de onde partimos.
(pausa. fortíssimo) tudo repentinamente congelado!
(pausa. normal) mas não em gelo, apenas imóvel, detido!
(pausa) escolhendo então que expressões se mantinham ou que se eliminavam…
(pausa) que supremo sonho!
<íon> (radiante, contemplativo) que solo! (sorri)
<azra> (aparte) obrigada! (suspira) esta deixa não é nada fácil!
<íon> (aparte) não, não! (contemplativo) estava a pensar na emily, há pouco!
(volta ao guião) retomando, não achas que seria interferir demasiado,
para um simples actor?
<azra> (ainda maravilhada) decidindo então
se deixo a plateia imóvel ou se a desperto,
(estala os dedos) com se estalasse os dedos!
<íon> (repete) mas… não achas que isso é interferir demasiado,
para um simples actor?
isso é o princípio ou é o fim?
<azra> (assertiva. vira a câmara para o palco. desliga-a. a imagem regressa)
o público cansa, íon! umas vezes reage, bem ou mal, pacífico ou agressivo…
mas, a maior parte das vezes, o seu silêncio é ainda mais ameaçante!
o que mais nos pode petrificar é a falta de debate, a falta de opinião!
(pausa) leva-nos ao desespero! os outros não deveriam ter tanto poder sobre nós…
<íon> mas… uooouuuu! não conheces a nossa dimensão, azra?
já viste a quantidade de planetas, lá em cima, maiores do que nós,
por descobrir, por habitar? olha à tua volta, azra! são só cadeiras!
são só cadeiras vazias, azra! que queres fazer com elas? colonizá-las?
(entra uma figurante pelo bastidor lateral, o mais possível ao fundo,
e atravessa o palco de um lado ao outro, uma só vez,
mas muito devagar, entoando um pregão acentuado. é uma mulher. é jovem.
leva um balão, vermelho, preso ao pulso, a prumo)
<figurante> siiiiiight-seeeeeeing spaaaaace-shiiiips (pausa) siiiiiight-seeeeeeing
spaaaaace-shiiiips (pausa) siiiiiight-seeeeeeing spaaaaace-shiiiips (pausa)
siiiiiight-seeeeeeing spaaaaace-shiiiips (pausa) siiiiiight-seeeeeeing
spaaaaace-shiiiips (pausa) siiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
<íon> (por cima, para azra) outro figurante?!
mas quem é este, agora?! (para a figurante) hei! fale mais baixo!
<azra> outra figurante?!
(grita) isto é um teatro, não é uma esplanada, não é uma rua!
(a figurante sai)
<íon> que loucura! ainda por cima… naves espaciais para turistas?
será que foi o encenador?
<azra> o encenador?! não! não deve ter sido, com certeza!
deixa lá, continuemos!
<íon> que estranho, não era o meu balão?
<azra> não, deixa lá a rapariga!
<íon> a rapariga? pois…
(encantado) a rapariga era tão parecida com a emily!
<azra> com a emily? deixa lá a emily!
(pausa) continuemos!
onde é que estávamos?
<íon> (ainda encantado) espera, espera! naves espaciais! é isso,
cadeira-dimensão-planeta-galáxia-universo!
o universo!
(eufórico. expande os braços) universo, universo!
<azra> pois, o universo é unificador!
um só verso, unificador de todos os versos!
<íon> universificador! uma máquina de uni-versos!
(pausa) uni, uni…
é um bom jogo! que achas?
<azra> como?
<íon> vemos quem diz mais palavras começadas por uni! bora! à vez!
<azra> hum… único!
<íon> unidade
<azra> unidimensional
<íon> unívoco
<azra> uníssono
<íon> uniangular
<azra> união
<íon> uniaxial
<azra> uniarticulado
<íon> universal
<azra> universalismo
<íon> não vale palavras derivadas! ;p
<azra> hum… unialado!
<íon> ok! boa! agora, sou eu… uni… univalente
<azra> univalve
<íon> unicapsular
<azra> muito bem! hum…
<íon> já me lembrei de mais duas! eheh!
<azra> hum… unifacial!
<íon> unifilar
<azra> unigamia
<íon> boa! unigâmeta!
<azra> unigâmeta?! isso existe? os gâmetas não são sempre únicos?!
<íon> hum… acho que sim, mas… ok! hum… unigénito!
<azra> uni… unijugado!
<íon> uau! essa foi mesmo boa! hum… unilingue
<azra> unilateral
<íon> unidireccional
<azra> unilénio!
<íon> uni quê? não inventes! isso existe mesmo?
<azra> de certeza absoluta! é como se chamava ao meitnério!
<íon> meitnério?! isso é o quê?! algum minério?
<azra> não! é um elemento químico… (pega no telemóvel.
pausa uns segundos) artificial, que foi desenvolvido
no instituto de pesquisa de íons pesados…
<íon> íons?
<azra> iões! não ligues à tradução! o meitnério é um metal. o nome
é uma homenagem à física austríaca lise meit…
<íon> como é que sabes isso tudo?
<azra> ah! estou aqui a ler na wikipédia!
tem número atómico 109 e símbolo mt. e lembra
um ainda mais engraçado, o ununúnio, que é o 111, símbolo uuu,
e que agora se chama roentgénio, símbolo rg. rg, de röntgen,
o mesmo que os rai…
<íon> ok, ok! já sei outra! unilabiado!
<azra> unimama!
<íon> unímano
<azra> oh, uninominal!
<íon> uninuclear
<azra> uniovular
<íon> hum… unioculado
<azra> unicórnio, esta é fácil!
<íon> unicolor… tão óbvio!
<azra> unicidade
<íon> já disseste único! é derivada!
<azra> pois, tens razão! hum… unici… unice… ahah! unicelular!
<íon> unice… unici… unico… unicode!
<azra> unicode? mas vale palavras em inglês?
<íon> pois… espera! uni… uni… unico… unicultor! eheh!
<azra> unipessoal, como tu…
<íon> unípede, como tu!
<azra> unipolar
<íon> unissexo, jantas comigo?
<azra> unir, mas não contigo!
<íon> unitário, claro, é como eu penso!
<azra> universal
<íon> eu já disse universal!
<azra> hum… não me lembro de mais nenhuma palavra!
<íon> pensa bem!
<azra> uni… uni… ahah! uno! pronto, já chega!
<íon> uno não é uni! (pausa) mas é isso mesmo!
universal! universo!
este teatro é (rápido)
um só, como o universo,
escuro, como o universo,
vazio, como o universo.
este teatro precisa de um nome, definitivo!
<azra> qual é o interesse de um nome definitivo?
<íon> (gesticula) nunca se sabe onde fica, nem como cá vir parar.
existe mesmo no mapa, sem nome?
<azra> este teatro já tem o nome que tem! é para ser
só um teatro,
só um palco,
nada mais! e já to disse várias vezes!
<íon> qual nome? (pausa) hum… uni… uni… uni!
espera um pouco! (íon sai para os bastidores. azra detém-se na plateia,
suspirando. passado um minuto, íon regressa com um balde de tinta e um pincel)
vês? aqui está! tinta escura, preta, como este teatro!
(aproxima-se da tela gigante, branca, que se encontra no fundo do palco,
molha o pincel e pinta, lentamente, as letras U, N e I. azra agita-se)
UNI! este teatro é o UNI!
(coloca o pincel dentro do balde)
<azra> (retira o pincel do balde) bom, agora que já pintaste, eu acabo!
(continua a linha do I como se fosse uma curva, formando um U, e acrescenta
N, Ú, N, I e O)
UNUNÚNIO! este teatro chamar-se-á UNUNÚNIO!
(coloca o pincel dentro do balde)
continuemos!
<íon> mas… mas UNI era muito mais fácil para todos
perceberem e memorizarem!
(retira o pincel do balde e rasura o que azra pintou. a imagem que permanece é
UNIUNÚNIO)
UNI! agora sim, agora podemos continuar!
onde é que estávamos?
<azra> (confiante) tudo bem, tudo bem… veremos mais tarde!
(pausa) tu disseste:
são só cadeiras vazias, azra! que queres fazer com elas? colonizá-las?
(pausa. muda de tom) ao que eu responderia:
nada, nada… só quero imaginá-las… um sonho!
é este o desgaste, estou cansada de auditórios indiferentes…
<íon> (dirige-se também para a frente do palco e ri,
pateticamente) então?! estão a gostar?!
(pausa. sarcástico) vai! vai!
acham divertido assistirem aos ensaios, não é?
(pausa. para azra) vês? também consigo imaginá-las… imagino
com tanta força que parece que as cadeiras já não estão vazias!
(pausa. azra está calada, olha a plateia num ponto persistente)
e pronto, se não estão vazias, agora, declamarei mesmo para todos!
querem que eu declame?
(pausa) não ouvi!?!
(vocifera) querem que eu declame?
(move-se até à rampa lateral. pára. segura no caderno aberto,
à sua frente, e fixa a plateia) o ciiii….cluuuuu da árté…
(falha-lhe a voz. nenhuma palavra mais sai da sua boca.
azra continua calada. de súbito, observa as suas mãos.
íon sai da rampa, desilusivo, os braços caídos)
não tenho jeito para nada, nem sequer quando declamo na plataforma!
(coloca-se junto a azra, baixa o tronco, olhando contra-picado
para a sua face. pausa) vá lá! deixa-te lá de estares sempre
a tentar mudar o mundo à tua volta! disfruta um pouco…
há coisas que são para ser como são… nem vale a pena questioná-las!
aproveita a vida como é!
(pausa. olha para a plateia, como se ganhasse fôlego, e solta,
quase que inadvertidamente)
o auditório é teu!
<azra> (ainda está de cabeça baixa. agora, erige as mãos,
como se o seu horizonte fosse bater nas suas palmas)
doem-me as mãos…
<íon> (nem se apercebe do novo transe de azra) que solo! (sorri)
<azra> (fraca) doem-me as mãos…
<íon> (desperta) o quê? as mãos? mas… de quê?
(parvo) não me digas que já tens artrites?!
(azra não responde)
é de teclar?
<azra> (brusca) volta ao guião!
<íon> ok, ok! (olha para o ecrã)
onde é que estávamos?
(continua o guião) azra, estás cá?
<azra> (azra sai da letargia, como se nada se passasse)
claro, claro!
onde é que estavas?
<íon> (procura e encontra, muito rápido, mas fala como um aparte)
gostei muito de te ouvir! e ainda bem que referes
os vários jogadores, o meio, o domínio sobre… que referes
as raízes, o infiltrar… é sobre isso que escrevi!
(estica os braços, colocando o caderno, aberto,
a trinta, ou mais ou menos, centímetros do nariz de azra)
olha só para o caderno! lê! demorei um mês a termi
<azra> (menopausa) menopausa? mas que bizarria é esta?
não havia nada mais interessante para escrever?
por sinal, ainda nem sequer é a altura! pausa é pausa, não é
<íon> menopausa? interessante?! ainda nem sequer leste, azra!
(pausa) lê!
<azra> (suspira) és tão teimo…

o ciclo da arte

a artis deixa-se infil e descarre a obra darte!
loquese armaze quanti sufi, o curad
trata devapo teóri, mascar ou since, jundosol
dgaleris q, condensá possibilida d (se) expor,
apelao coleccionad, ou ao gerende museu,
q agoré o momen, tem dser agor,
a precipitaç máxi estáà bei d aconte!
aga-salhem-se bem e, sff, retenhao máxi dágua
no depósilá dcasa, pois, se ñ, a água voltinfiltrar-se
no lençó doutro curad, galeris ou comprad!

d reter q, às ve, a cadeialiment mudapen
dnome, dposiç ou dsenti,
mas o ciclgeral é sempro mes

<azra> já acabei!
<íon> (retira o caderno da frente de azra)
já acabaste?! não leste tudo!
<azra> (entediada) li, li!
<íon> está muito bom, não está?
está magnífico, não está? levei um mês até
<azra> tens um fascínio pelos sufixos de acção,
pelos agentes, não tens?
<íon> não, mas… percebeste a analogia com o meio literário?!
(pausa) punhas o editor no lugar da ga… ga… ga…
(fica na expectativa de uma resposta)
é melhor acabares, para perceberes o que leste!
<azra> (inspira. enche as bochechas. paralisa os lábios cerrados. abre os lábios
como um dique marítimo, um parque eólico, uma barragem, algo do género)
se queres mesmo saber, o que li, ainda que incompleto,
foi a analogia com o ciclo da água, isso sim!
enfim… o meio literário, o meio artístico… tudo é um meio
para se pensar em dinheiro!
(pausa) é sempre o dinheiro… só se pensa em dinheiro!
<íon> (muito motivado)
mas viste bem as figuras de estilo?
se substituires cada um pelo
<azra> (interrompe)
por favor, íon!
(muda de expressão)
estou sem paciência para…
para o que escreveste…
para o teu estilo… não tem efeito…
nem sequer se pode chamar estilo…
nem sequer se pode chamar poema…
ainda que seja… bem, um
poema em construção, talvez,
se vier a ser bem trabalhado,
se saires das palavras que roubaste…
se saires das rimas inconscientes!
isso é mesmo teu?
<íon> (indigna-se)
mas… eu não sou nenhum as-sal-tan-te, azra!
não roubo nada, nem comida!
<azra> olha, estou aflita! tenho que ir rápido à casa de banho!
(afasta-se)
<íon> mas foi para ti, pensei em tiiiiiiiii… acabei-o ontem!
(lança o braço direito, vencido)
nem sequer vim ao ensaio por causa disso!
(eleva a voz. azra desce as escadas laterais do palco)
azra!
(azra ouve já ao longe, subindo pela plateia)
foi para ti…
(muda o tom)
o que é que acharam mesmo do poema?

 

acto 3

tatsuo entra pela coxia. íon está sentado num canto, como um feto.
o palco está a meia-luz, com um foco sobre tatsuo. tatsuo enceta um acto
performativo, em que simula ler um poema,
articulando a boca, muda.
muda de gestos e inicia uma coreografia, sem centro de massa.
há um descontrolo do corpo. (etiqueta: umeda ou outra)
por detrás, na tela gigante, uma sombra projectada duplica todos
os movimentos de tatsuo, com um lapso de segundos, como se fosse
um cânone musical que controlasse.
tatsuo termina a coreografia, voltando ao mesmo
ponto de leitura e à posição inicial.
a imagem da tela apaga-se e o espaço prolonga-se, lento, luminoso,
indefinidamente, até ao infinito (etiqueta: valbuena ou outra.
se o orçamento não permite, elimine-se).
a imagem apropria-se do palco (agora sim). as paredes caem para uma planície.
agora há mesmo uma estrada e um campo. continua a não haver
nenhuma árvore, mas o sol é bastante.
(ouve-se água, ao fundo, como se fosse uma fuga, um prelúdio)
há várias deixas cruzadas.

<íon> (tontamente indignado, reprimido, abandonado)
estiveste a ensaiar isso? também te mandaram ser dançarino, agora?
<tatsuo> (exausto)
não, improvisei! não há coreógrafo! por vezes, faz-me bem.
solto o corpo e abandono a leitura, até esgotá-lo!
<íon> a azra pediu para…
<tatsuo> é um pouco como quem compõe a sua própria música.
por vezes, necessita de interpretar, improvisando partes, seguindo outras,
até exaurir o corpo! (pausa)
gostaste da actuação da emily? magnificiente! a música é
(volta-se para a tela. procura uma palavra que complete o enunciado)
<íon> (contente) estranha, magnífica, agoniante, densa,
entrópica, sublime, astronómica, galáctica, uni
<tatsuo> (interrompe) UNI?! o que é aquilo ali escrito?
<íon> ah! fomos nós que…
<tatsuo> (interrompe) nós? nós quem?
<íon> então…
<tatsuo> mas ficaram aqui a fazer o quê?!
quem é que vos pediu para escrevinhar a tela toda?
<íon> mas assim o teatro já tem um nome!
<tatsuo> mas agora também anotam a peça? também seleccionam?
como é que fazemos agora? acham que vamos seguir as vossas diatribes?
<íon> eu acho óptima idei
<tatsuo> na tua cabeça é tudo racional! nada emotivo, nada…
não era suposto…
<íon> mas… olha que tu, também… a azra pediu para não parares!
<tatsuo> (nada sereno) mas não parei… (pausa) precisava
de fumar um cigarro, beber água e comer qualquer coisa…
por isso, fui lá fora. entretanto, escrevi… e escrevi…
sozinho é mais fácil… e já acabei o poema! não parei! nunca paro!
(ajeita os óculos. pausa) é preciso cuidado… é sempre um ensaio…
(sereno) e eu não detenho o ensaio, nem a experimentação!
(pausa) penso sempre: tatsuo, investe mais no poema!
como diz o simic, o tempo dos poetas menores está a chegar!
<íon> quem é o simic?
<tatsuo> (não escuta. êxtase) é preciso cuidado!
tu estás atento ao que transita? tu estás atento à passagem?
<íon> eu acho que
<tatsuo> mas não é uma passagem qualquer!
é algo que altera, (expande as pálpebras) mas não se altera.
é algo que muda, (expande as pálpebras) mas não se muda.
é algo que substitui, (expande as pálpebras) mas não se substitui.
quando fecho a última página do borges, por exemplo, e abro logo a primeira
do pinter, fico com uma sensação de desfasamento, de fuso horário
alte… e demora, o arranque. e depois há uma espécie de amnésia que se instala,
como se me atirasse de um penedo, e depois o pinter permanece na cabeça
quando já abri o simic e o simic ainda está a ramificar sinapses
quando a electricidade e a corrente e faz-se um curto-circuito
com o perec e com a… é uma sensação de desfasamento!
tóquio-sydney-paris-londres-lisboa-belgrado-buenos aires-nova iorque!
e só assim criarás um estilo próprio, autêntico, despido e vestido pelos outros,
e tudo ao mesmo tempo, sem nunca deter o ensai
<íon> esse simic… quem é ele?
<tatsuo> (feliz) é um poeta! vou ler-te o início, tenho-o sempre comigo:

The time of minor poets is coming. Good-by Whitman,
Dickinson, Frost. Welcome you whose fame will never reach
beyond your closest family, and perhaps one or two good
friends gathered after dinner over a jug of fierce red wine…

<íon> (desdenha) mas… não foi sempre assim?
acho que esse tal de simic está en-ga-na-do!
não estivemos sempre na época dos poetas menores?
e na época dos poetas maiores, também?
<tatsuo> pois, talvez tenhas razão, talvez tenhamos estado sempre
a produzir poetas menores e, em raras ocasiões, poetas maiores (pausa)
do que os menores! o tempo dos poetas menores está sempre a chegar…
<íon> é como a guerra, não é?
o tempo da guerra também está sempre a chegar!
<tatsuo> (olhos na plateia, ao longe)
isso é verdade…
como estava enganado, o wells…
como estava enganado, o wilson,
dizendo que aquela era a guerra que acabaria com todas as guerras!
<íon> quem é o wilson? também é poeta?
<tatsuo> não! o woodrow wilson, o
<íon> (desconfia) woodrow?! querias dizer, wordsworth?
<tatsuo> não! não é o poeta, é o presidente dos estados unidos!
<íon> ah, ok! (finge um chuto numa pedra)
mas esse simic tem razão, quando diz que
a fama dos poetas menores nunca ultrapassa o guarda-fatos da família!
<tatsuo> (frontal) não deves ter ouvido bem! não é closet, é closest!
(pausa) o problema é que os escritos dos poetas menores
muitas vezes chegam longe de mais, saem do seu armário,
absorvem a época, absorvem o gosto… ou o gosto é absorvido pela moda…
(pausa) e quem é que legitima estes poetas? (pausa. tom descritivo)
na biblioteca, ficam na estante, enquanto outros são enviados
para o depósito… e
para o subdepósito… e…
para abate, porque ninguém os lê!
na livraria, estão na montra!
na ditadura, estão no programa de leitura!
na universidade, estão nas teses de doutoramento!
nos jornais, na televisão, na internet, estão em alta,
popularidade máxima!
<íon> (pausa) achas mesmo?
<tatsuo> (convicto) claro! é por isso que digo que
o gosto é absorvido pela moda e a moda absorve a época!
e os poetas também são como um pronto-a-vestir,
usam o que se está a vender, com o corte que se está a vender,
com o tamanho que se está a vender,
não te parece?
<íon> achas mesmo?! (pausa) nunca tinha pensado desse modo…
<tatsuo> (reforça) claro que sim! e isso é geral, não são só
os poetas! ainda agora estive ao telefone e só falámos sobre isso…
que longa discussão… por isso é que também demorei mais!
e depois precisava de uma pausa. (pausa) de comer.
e, como sabes, não é suposto termos elipses!
(pausa) é que o segundo acto foi muito desgastante…
(pausa) tu não podes faltar tanto aos ensaios!
<íon> (faz um gesto cíclico e infantil na barriga)
podias ter dito qualquer coisa, eu também já co-mi-a!
mas… quem era?
<tatsuo> o miguel!
<íon> que miguel?
(repara, de repente, nos pés de tatsuo. está surpreso. indigna-se)
mas… essas… mas essas são as minhas sa-pa-ti-lhas!
<tatsuo> (lúcido e sincero) oh! desculpa!
estavam no teu balneário… quer dizer, no camarim!
como estava cheio de fome, esqueci-me completamente de te pedir!
<íon> (encolhe os ombros) bom, não há problema, mas…
há o mí-ni-mo de respeito… e hi-gi-e-ne… calça
<tatsuo> euh…
<íon> do é calçado, mas…
(não se esquece. repete) que miguel?
<tatsuo> então, que miguel?! o encenador, claro, a dizer que
está um pouco atrasado… mais uma vez…
(e eleva as sobrancelhas e os ombros, até que baixam,
no preciso momento em que termina a deixa)
no meio do trânsito…
<íon> hum… o miguel, pois! já me tinha esquecido dele!
<tatsuo> (enfurece-se) daí a discussão! expliquei-lhe
que isto não pode continuar assim!
que estamos todos dispersos, desorganizados.
que há partes da peça que não ligam, que não há continuidade,
que o segundo acto exige demasiado de mim,
que é muito intenso, muito desgastante,
que ele não pode continuar os ensaios como se esta fosse outra peça qualquer,
que ele não pode continuar a modificar como está na moda,
que se ele continua a boico…
<azra> (entra em palco, vinda da plateia) é verdade!
<tatsuo> (preocupado e carinhoso) onde foste?
<íon> foi à casa de banho, não viste? nunca estás a-ten-to…
(olha para trás) que cheiro é este?
<azra> (desabafa) sim, é verdade, o segundo acto pareceu-me
mais intenso, mais pessoal,
mas o anterior foi bem mais desgastante…
<íon> (pseudo-ingénuo. arregala as sobrancelhas) mais po-é-ti-co?
<tatsuo> (espanto) o primeiro? o primeiro foi tão curto…
<azra> não, o anterior!
<tatsuo> e ainda está tão cheio de tentativas, de ensaio!
vai ser um acto de perseverança!
<íon> (interrompe. baralha-se) o an-te-ri-or?
não atingiram mais ou menos a mesma duração?
<tatsuo> (espanto) quem?
<azra> (espanto similar) o quê?
<íon> os actos que houve!
<kenule> (ouve-se uma voz grave, alta e entrecortada,
por todo o palco,
omnipresente)
houve!
(mais alto, depois, silêncio)
houve!
(azra e tatsuo baixam-se)
<íon> (de pé, perplexo, olhando a imagem do fundo,
como se esta lhe falasse.
em médio tom)
está aí al-guém?
(azra e tatsuo mexem a cabeça em várias direcções,
olham para cima,
à procura de algo)
<tatsuo> (vira-se para azra, atarantado.
fala muito baixo,
quase um sussurro)
vês alguma câmara?
<azra> (voltando a si,
depois de perceber o que se passa.
tenta mostrar sinais de desorientação)
não é uma câmara!
o som veio das quatro colunas ao mesmo tempo!
(azra e tatsuo erguem-se)
<kenule> os actos que houve! o verbo haver, na acepção de existir,
(ouve-se o ruído do microfone, que guincha) é impessoal…
desde já peço imensa desculpa, se interrompi o ensaio,
mas custa-me muito ouvir erros de gramática…
assim tão crassos… e, sobretudo, frequentes!
(suspira, ouve-se a respiração pesada) portanto, permitam-me,
o vocábulo correcto é houve, a terceira pessoa do singular!
<íon> (percebe agora que não há nenhuma voz vinda do ecrã)
quem está aí?
<azra> é verdade, íon! é verdade, enganaste-te!
(aponta para o ecrã) olha para o guião na imagem,
está escrito houve… e, não, houveram!
<egon> (ouve-se novamente o ruído do microfone,
guinchando, trocando de mãos) desculpem! é o meu marido, o ke
<eftan> pai! (voz esfuziante e fresca) pai! já chegámos!
<egon> (feliz) olá eftan! então, a escola correu bem? passaste um bom dia?
<eftan> xim, claro que xim! (ri-se) e o pai foi-me buscar!
<kenule> pois fui!
<egon> ah! então foi isso! (sorri) eu estava já
a arrumar o material para sair para a escola!
<kenule> saí mais cedo, por isso, aproveitei e fui buscá-lo logo!
estava sem saldo, (sorri) desculpa não te ter avisado!
<egon> não tem mal nenhum, fico muito feliz por vos ter aqui!
(suspira) nem sabes o que me aconteceu hoje! tive uma multa… no teatro!
<kenule> uma multa?!
<tatsuo> (para azra) uma multa?!
<egon> e, ainda para mais, estou exausto com as tiradas inconsequentes
daquele actor
ali ali ali
que que que
(repara no palco e vê três pessoas de frente para si. apercebe-se
que o microfone ainda está ligado e
que a palavra
que
ecoa por todo o palco)
queiram desculpar-me, como dizia, é o meu marido, o kenule,
que é linguista, não levem a mal, é para ajudar, (inspira. ouve-se o nariz)
sei-o bem. e esta é a eftan, a nossa filha!
<eftan> pois sou! (grita, desafina) sou eu!
<íon> (olha para o chão, a sua voz quase nem se ouve) pois…
<tatsuo> (para azra. surpreso) a pirralha está mesmo ali?!
<azra> (eleva a voz em direcção à cabina) não tem mal!
ainda estamos nos remendos do guião e das deixas, aqui do íon!
é um prazer conhecê-lo! ajuda sempre!
<egon> ainda bem!
<kenule> obri…
<eftan> pai! sabes quem encontrámos no autocaaaaaarro?
sabes? quem? quem? a ling!
e já conduz muito mais melhooooooooooor!
<egon> (ouvem-se botões a serem manipulados) ai sim?!
<kenule> (com paciência) melhor, eftan, melhor!
<egon> (ouvem-se botões) que bom!
<eftan> pai! o que são essas luzes que piscam tanto?
<egon> ah! é o equali
<azra> (retira o telemóvel e observa) já está na hora de sair!
<egon> (ajeita o microfone) sim, sim! bem sei!
estava só a deixar o material pronto para…
(pausa) pronto, já está! até amanhã!
<azra> (acena) um beijo para todos!
(visivelmente alegre) até amanhã!
<tatsuo> (gritando, tira a câmara do tripé, salta do palco e sobe
por entre as cadeiras da plateia. imagem em directo)
a pirralha está mesmo aí? eftan, vem cá!
<eftan> (liga o microfone) xiiim!
(percurso em directo de tatsuo dentro do teatro até à cabina)
<íon> (agita a cabeça, como quem nega o que diz)
mas… o tatsuo conhece esta gente toda?!
<azra> (presa ao movimento de tatsuo) o que é que disseste?
<íon> (olha para trás) que cheiro é este? já está cá desde manhã…
<azra> (desdramatiza) ah! é o miguel!
passa a vida com as tangerinas…
<íon> ai é?! que estraaaanho! (pausa longa)
mas… quando é que foi a última vez que o mi-guel esteve cá?
(pausa) parece tangerina putrefacta…
o cheiro já devia ter saído…
<egon> (ajeita o microfone) vamos agora! ficam bem aqui sozinhos?
(aguarda que confirmem)
<azra> (sorri) sim, não se inquiete, já estamos a acabar…
<tatsuo> (dentro da cabina) claro, egon, obrigado!
<eftan> olá tátá!
<tatsuo> (cruza fala com íon) olá! estás boa?
<íon> (berra) já somos crescidinhos!
(mais baixo, para azra) mas… a peça já está acabada?
<eftan> xim! (o microfone desliga-se, ruidoso)
<íon> (baixo) ouvi dizer que o autor recebeu uma quantia bem boa pela peça,
para ir a cena…
<azra> (irrita-se) mas o que é que tu sabes sobre o autor?
(pausa) é bizarro, mas… se te interessa assim tanto,
quem escreveu a peça nem sequer ganhou nada…
<íon> na-da?
<azra> as pessoas acham que as artes são entretenimento,
que são recreação e que não devem ser pagas, que não são trabalho…
(pausa) quando são trabalho… e trabalho do duro!
<íon> pois, mas as…
<azra> (engole) mas as pessoas admiram-se que alguns artistas
só tenham tempo para as suas obras com subsídios! (eleva o indicador)
e olha que não defendo dependências! (pausa) nem desigualdades!
já viste quantas mulheres são apoiadas?
<íon> sim, mas… as artes também são ins-pi-ra-ção!
não é só trabalho!
<azra> inspiração? (em crescendo) ins-pi-ra-ção?!
o ar rebenta a pleura… quando se trabalha forte, várias horas por dia…
as artes são trabalho, muito trabalho, muito aperfeiçoamento…
como é que é suposto um dramaturgo ou um poeta terem vida,
se não lhes pagam pelo trabalho?
(pausa) são os que vendem menos!
e não têm que comer?
e não têm contas para pagar?
não têm filhos, como as outras pessoas?
(azra desaparece, esbaforida. íon segue-a)

 

acto 4

na cabina (não é nenhuma cabina montada no palco, imitando. não.
já houve homografias suficientes)
quem quiser, pode virar-se.
mas, para quê? não há som e imagem?
(em todo o caso, a plateia continua vazia. não há audiência)

<tatsuo> (estende um leitor) escrevi um poema para ti,
a minha heroína! toma eftan, queres ler?
(eftan agarra. brilha)
<egon> filmo?
<eftan> xim, xim!
<tatsuo> claro!
(o vídeo é transmitido na tela do palco. eftan lê. grande plano)

para a eftan

uma criança, no tempo, é
uma borboleta que se recorda,
de um país para o outro,
apenas de uma ou outra flor,
de algo que cada pétala lhe ensinou,
como se se retirasse, benjamim,
da infância, só, para se lembrar

<eftan> mas eu não sou nenhuma benjamim!
(dispara, de imediato) até eu escrevo melhor!
<tatsuo> pois não, és um beija-flor!
<kenule> eftan! o que é que se diz?! obri…
<eftan> obrigada, muito obrigada! gostei muito!
(ri-se e mostra os dentes) estava só a brincar!
<tatsuo> (bem disposto) sua brincalhona! eu sei,
por isso é que te dediquei este poema!
<eftan> (rápido) tátá! mas as borboletas também conseguem…
também pousam nos nossos dedos? e elas sabem quando lhes queremos
fazer festinhas nas asas? e um dia podíamos abrir as janelas
do nosso carro para elas entrarem e assim não se cansavam tanto
a fazer essa viagem até ao outro país e assim podiam…
assim visitavam ainda mais flores! e mais amigas!
<tatsuo> (compreensivo) bem, eftan, as borboletas irradiam
liberdade. ninguém consegue pará-las! nem na nossa mão!
<eftan> mas elas são tão queridas…
<kenule> (meigo) eftan! as borboletas são insectos,
não são animais vertebrados, como nós… por isso,
não têm um cérebro que se emocione…
(pausa. olha para tatsuo, de lado) mas, um dia destes, podemos
abrir a janela da nossa carrinha em viagem!
<egon> (o som está perto da câmara) tatsuo! o teu poema é belíssimo!
<tatsuo> escrevi-o como se fosse para a filha
que um dia terei! gostas de borboletas, não gostas, eftan?
<eftan> adoro! e tu também gostas?
<tatsuo> sempre gostei imenso das borboletas!
desde criança… (pausa) as borboletas representam
a liberdade e a infância… aquela altura em que somos
pequeninos, em que estamos a crescer!
(pausa) e, agora, que sou adulto, representam
a mudança,
a transformação,
a metamorfose de tudo!
(os olhos brilham. está maravilhado. eftan segue-o, de boca aberta)
são a poesia… a forma como escrevemos um livro…
como o vemos… imobilizando-se, pouco a pouco, transformando-se,
pouco a pouco, de um estado para o outro,
como a borboleta… ovo, larva, crisálida e, de novo, borboleta…
as borboletas é que são belas!
(pausa) são imago… são como um mago, eftan!
<eftan> a minha mais preferida é… é… é a crisal… a cristáááááá…
(tropeça e cai sobre a câmara. a imagem rodopia pela cabina e embate
no solo. apaga-se. na tela, fica um ecrã branco. há uma pausa longa.
a cena muda de foco. ouve-se alguém a dizer: cucu)
<zaha> cucu! pode-se? (como ninguém responde, sobe
para o palco e desloca-se até ao centro. pausa) olá… áá!
<íon> (regressa. atónito. o guião corre sobre o ecrã branco)
mas… quem é a senhora? não vê que estamos a ensaiar?!
<azra> (regressa atrás. sem grande surpresa) por aqui? como estás?
<zaha> olá akera! como estás?
<íon> (para azra) mas quem é esta?
<azra> esta?! (pausa) a zaha é a editora do…
<zaha> (insinua-se) prazer! (altiva) esta… esta sou eu!
peço desculpa, se incomodo…
<azra> (apresenta) zaha, íon! íon, zaha!
<íon> (encantou-se) ah! editora?!
o prazer é meu! como está?
<zaha> genial! (pausa) então, meus queridos, tudo activo por aqui?
<íon> tudo actiiiiiivuuuu… bom, tudo mais… ra-di-o-ac-ti-vo!
(bruto) o teatro está todo avariado… nada funciona como devia…
(simpático) o que a traz por cá?
<zaha> peço desculpa, se interrompo… mas… a propósito,
não use a palavra radioactividade à frente do…
<azra> por favor, isso…
<íon> (esquisito) ra-di-o-ac-ti-vi-da-de, porquê?
<zaha> (ansiosa) estou farta de lhe ligar… tem sempre o telemóvel
ocupado, ou para aí no silêncio… como sabia que estão nos ensaios,
bom, decidi só fazer uma visita rápida, para lhe dar uma palavrinha…
estou cheia de pressa… (seduz) espero que não te importes, akera!
<íon> akera?! mas já se alterou tudo para azra! e,
de qualquer forma, esse nem sequer é o nome verdadeiro!
<zaha> (continua) tenho um jantar importantíssimo, não tarda,
com o adido cultural japonês e com o iraniano,
e preciso mesmo de falar com ele…
<íon> ele? mas está à espera de quem?
<zaha> (cheia de carácter) eu não espero por ninguém! por isso é
que vim cá, para falar com o tatsuo!
<íon> ah, o tatsuo! (olha para a cabina) mas… ele está lá em cima!
(vira-se para zaha)devo dizer-lhe que admiro
muito as mulheres, ainda para mais, as mulheres i-ra-qui-a-nas.
se soubesse o quanto me diz… é preciso de facto muita coragem para se
<azra> (irrita-se) por favor, íon! isso não está no guião… olha para o
<íon> (no mesmo tom) sim, está bem, mas… que raio… eu tenho boca!
já não estamos a ensaiar, pois não?
(mais baixo. aparte) ou estamos?
<zaha> (para íon) ó filho! (virando-se para azra) já agora,
deixa-me responder, querida! (olha para íon de novo) para já,
eu não sou iraquiana, sou iraniana! e, depois,
já cá estou há muitos anos…
há mais anos do que o necessário…
por isso, a coragem…
a coragem é rela… por acaso,
a propósito, o que o rapaz diz é
<azra> (exaspera) bem, já pararam os dois?
liberdade, liberdade, mas nem tanto…
<íon> mas… que…
<azra> (continua) os nomes das personagens
não são para ser lidos literalmente…
é essa a ideia que está escrita nas notas, no painel de controlo!
(aparte) chegaram a ler?
(recompõe-se) embora haja certas sugestões…
que dizem respeito…
à exclusão e à inclusão…
isso não significa que.. por favor,
esta peça pretende ser o máximo possível univer
<íon> mas… que raio! é que… já chega!
também quero… também tenho direito… digo o que me apetece…
também penso e (revolta-se)
não me limito apenas a cumprir ordens, se queres saber!
não sou nenhum… actor,
nem nenhum… intérprete musical,
nem nenhum… agente de autoridade,
nem nenhum… agente secreto,
nem nenhum… poeta trovadoresco!
(pausa) assim, não interpreto mais nada…
eu sou um criador! sou só poeta! e penso!
<azra> mas, nem tanto… (assertiva) não passes das marcas!
(pausa) esta peça é universal… são apenas pessoas diferentes
que podem e querem conviver!
(pausa) é sobre essa possibilidade, a possibilidade de vivermos juntos…
<íon> (som nasal. asco) não foi isso o que o tatsuo me disse!
<azra> juntos! é essa a ideia! (aparte) se é que leram, atentos! (assertiva)
não é uma peça étnica, nem de género, nem de sexo, nem de nação, nem de religi
<zaha> sim, querida, está bem, mas vamos lá ver,
até faz algum sentido que o rapaz queira improvi
<azra> (corta) bem, para que é que vieste cá? não estás com pressa?
não queres o tatsuo?
<zaha> (relembra-se) sim sim, claro! quando é que ele desce?
<íon> deve estar mesmo a… quer que o chame? não me custa nada…
<zaha> se não se importa, agradecia…
<íon> sem problema algum, o prazer é meu!
(sorri melosamente. desata-se, corre para a cabina)
<zaha> então, akera?!
(pisca-lhe o olho) quando é que isso está pronto?
já se decidiu onde se coloca o clímax?
<azra> não é akera, é azra! o meu nome já foi substituído por azra!
e arranjou-se forma de alterá-lo em toda a peça… colocou-se o
tatsuo a… bem, depois vês! têm-se substituído bastantes coisas… há vários
pontos climácticos e anti-climácticos!
<zaha> (sentenciadora) sim, acho tudo isso genial, mas daqui a pouco já
parece o que yulia diz na novela do chekhov:
temos tudo o que precisamos – um teatro e actores,
só nos falta é uma peça.
<azra> uma peça… (pausa. pensativa) uma peça é como um bloco poroso,
um quarteirão na cidade. é uma muralha que guarda os seus segredos,
aqueles que já ninguém conhece, que se rasuraram, os que se constroem
enquanto as pessoas se escrevem, e os que alguém lerá um dia… quando
descobres uma porta, entras para muitos pátios, com muitas portas… e daí,
bem, é por isso que, neste momento, o íon
<zaha> (ansiosa, de novo) mas quando é que recebo a peça?
agora, é mesmo boa altura… revê-se, pagina-se e manda-se para a gráfica.
não sei já disse, mas já tenho capa e tudo!
(pausa) não tarda, está aí a rentrée e… sabes como é…
<azra> (com alívio) esta semana! mais uns ensaios e acho que fica tudo
coerente, corrigido e comple
<zaha> (eufórica) mas já há título?
(de súbito, zaha e azra olham para o canto do palco. íon chega vitorioso,
com tatsuo, que também vem satisfeito)
<tatsuo> ora ora, quem é mesmo, é a dona dora! estás boa, zaha?
<zaha> olá, querido! sim e tu? tens o telemóvel sempre
interrompido ou…
<tatsuo> hum, pois… há pouca rede aqui e fiquei sem bateria…
<zaha> saí do escritório e decidi passar por cá… já deves saber porquê!
<tatsuo> hum… sim!
<zaha> mas não posso demorar muito, estou cheia de pressa, porque tenho um
<tatsuo> (interrompe) nem vais acreditar! tenho ensaiado e ensaiado…
e… e… e… (na expectativa de uma resposta)
já terminei o poema central do livro! no entanto…
aqui o íon e a azra deram cá uma luta… bem fizeram que
começasse e recomeçasse o poema todo… mas agora… querem ouv
<íon> (corta) qual livro?
<tatsuo> o meu novo livro, o sa-ne-a-men-to do po-e-ma!
e, sabes que mais, zaha?
agora, até já acrescentei outras personagens…
um eremita,
uma enfermeira,
uma médica,
um linguista,
um técnico,
uma criança…
mas estes não são do poema central!
<azra> (escandaliza-se) do poema central?
isso significa que os outros estão nas margens, que são periféricos?
<íon> (corrobora) pois! há poemas pe-ri-fé-ri-cos?!
ainda se fossem poemas suplentes… no outro dia, escrevi um assim…
era um bocado au-to-bi-o-grá-fi-co, mas…
<tatsuo> não, não! não compreenderam bem, não era literal!
(fala mais alto) só queria dizer que acabei o poema mais importante,
aquele que culmina todos, que agarra e liga todos…
<azra> ah! estás a dar-me razão! tu atribuis um carácter de importância
maior ao que está no centro! (retórica) é o principal, não é?
<zaha> (incomoda-se) acho que exageras…
<azra> exagero?! porquê?! não se pode discutir?
afinal, o que é uma conversa?
(pausa) temos sempre de falar
no vago,
de generalidades,
à superfície?
(o volume do guião sonoro automático aumenta progressivamente:
na-da dis-so, só a-cho é que o tááááááááááááááááááááááááááaaaaaaaaaááááááááááááááaaaaaaaaáááaaááááááá
aaaááááaáaáaááááááááááááááaaaaaaaaaaááááááaaáááaáá
aáaáaááaáaááaáaááaáaáaáaáaááaáa
áááááááááááááá
áá.
logo de seguida, fim abrupto. não há transição gradual)
<zaha> (amedronta-se) o que foi isto?
(aparte) activaram o guião para quê?!
<azra> (rápida) não é nada, não é nada…
está estragado… (abana o braço) continua!
<zaha> bom… agora perdi-me… onde é que eu ia?
<tatsuo> (muito calmo) acho que exageras…
depois, foi a azra… e… ah!
nada disso, só acho é que o tatsuo…
<zaha> ah! ok, ok! (volta ao papel)
nada disso, só acho é que o tatsuo estava apenas feliz!
é um poema charneira na sua obra!
(pausa) e quem acompanha o seu
<íon> (patético) é a mo-di-nha, é o que é…
o que está no centro é a mo-da!
e ainda me vem com conversas…
e depois vemos para aí esses…
sem qualquer consciência das coisas…
sem consideração nenhuma pelos outros…
<tatsuo> (seco) já falaram todos? (pausa. irrita-se) agora, se me permitem…
(pausa) dá-se importância ao pormenor, quando é relevante!
(pausa) uma conversa corrida é uma conversa corrida… nem sempre pousamos
o mesmo grau de rigor em cada palavra que soltamos da boca… é só isso!
(pausa) claro que não há
poemas periféricos,
nem suplentes,
nem nas margens,
nem charneira…
nem o que está no centro é o mais válido!
(pausa) há um fluxo imparável de dentro para fora e de fora para dentro…
tudo fica misturado, miscenizado!
<azra> (expande os braços) está bem, mas, só o facto de falares
num fora e num dentro é como se já balizasses as coisas…
finalizas logo uma forma…
permites que um líquido fique a…
empedernir
<íon> a empedernecer…
<azra> deixas que um líquido…
deixas que um líquido atinja um ponto de coagulação!
(pausa) e isso…
<tatsuo> (muito ciente) e se for?
também é bom que algumas coisas sejam estanques,
que se finalizem,
que estejam definidas,
se não…
<azra> (move-se pelo palco) oh! as pessoas andam sempre
à procura de definir tudo! (pausa) atingem uma forma final
(a saia alterna de forma diversas vezes. agita-se. levanta-se. esvai-se)
e não saem de lá…
e gira sempre tudo em torno disso…
daquela forma, daquele molde, daquela posição…
e não alteram nada…
e tudo tem que ficar coagulado, rápido, para sempre!
tudo tem que ser igual todos os dias, confortável
e (levanta o indicador) inquestionável! (pausa)
e se algo repentinamente fica líquido, fluido, aí…
aí entram em pâ-ni-co, viram…
às vezes, deprimem,
às vezes, trasfegam para o lado totalmente oposto… ficam radicais!
e vem a bebida, a droga, a religião…
ou as corridas em pamplona, para desanuviarem de modo bruto!
(aparte) o que é que um pessoa civilizada pensará disso? (pausa)
e vêm as experiências alternativas…
e a meditação… que, afinal, é boa, aos sessenta
e… (pausa) depois querem converter os outros…
<tatsuo> (grita, em crescendo) ei! ei! ei! ei! (indo-se embora)
aonde é que tu já vais?! (detém-se. olha para trás, para todos)
estava tão animado! já conseguiram estragar-me o momento!
<azra> (pára. consciente) volta aqui, tatsuo, por favor, peço-te!
<tatsuo> porquê?! (expectante) ainda querem ouvir o poema?
<todos> (fortíssimo) claro!
<tatsuo> (acalma-se. aclara a voz)
agora, leio só o final…
(tira um leitor do bolso e inicia a leitura)

porque um poema não é estático nem dinâmico,
é alga orgânica, enraizada, diluída,
onde conflui tudo e conflui nada,
porque um poema nasce da combustão do poeta
e as letras aglomeram-se, como tecidos intermitentes,
porque um poema, sem cofragem, oxida e retrai-se,
e as palavras crispam-se, sibilam-se, friccionam-se, lascam-se,
e libertam pele e ondas capilares,
porque há rio e mar a avançar dentro do poema
e é preciso drenar, drenar e voltar a drenar,
é preciso expulsar as substâncias suadas,
porque um poema é aquoso e reage às secreções,
porque um poema é uma construção lenta do imediato,
e seja modulado ou não, com graves alicerces ou grandes vãos,
um poema precisa de sanear-se –
porque o seu fim não é passear-se asséptico, imperceptível, desinfectado,
é antes cravar a áspera migração dos fluidos
e evitar, evitar, a rápida congestão das palavras.

<íon> (mal deixa que tatsuo termine) uau! sim, sim!
anatomia, biologia, arquitectura e geologia,
<zaha> genial!
<íon> as minhas disciplinas favoritas! mas…
que raio, estás a escrever tão bem!
não devias escrever tão bem!
<zaha> genial, tatsuo!
<tatsuo> obrigado!
<azra> tatsuo, para
<íon> (interrompe) bom… agora já se faz tarde e eu… corro todos os dias!
dona zaha, um dia destes passarei pelo seu escritório! o que acha?
(confuso) ando a pensar num novo método e…
<zaha> (não presta atenção nenhuma a íon. eufórica)
deveras, tatsuo, os meus parabéns! excelente! excelente!
quero ler tudo! envia-me isso o mais rapidamente possí
<íon> (interrompe) bom, então até lo
<azra> (interrompe) tatsuo, os teus últimos versos eram bons,
mas este conjunto final está ain
<tatsuo> (interrompe) tanto insistiram para que eu reescrevesse,
que depois não me apeteceu parar! eliminei o resto e reescrevi um poema novo!
(para zaha) e a respeito de reescrita,
tens de ler o resto da peça, está quase
<zaha> (continua eufórica) mas já há título?
(ninguém responde. vai olhando um a um, enquanto inquire)
tatsuo? (calado) íon? (calado) akera? (calada)
<azra> não é akera, é
<íon> akera? (fica com cara de grande enigma) mas qual peça? esta peça?
<tatsuo> bem, o título… está interessante:
a-ke-te-ra é a-ze-ra!
faz voar, como uma borboleta…
e aponta imediatamente para o cerne da…
<íon> (atónito) aketera é azera?
isso é difícil de dizer…
e… demolir a co-a-gu-la-ção?! não era esse?! ou era metonímia?
<zaha> aketera é azera?! (espanta-se) qual é o papel de aketera?
<íon> (continua, alheio) é muito mais giro! por acaso,
é um pouco mais rebuscado, mas…
<zaha> queridos, então que fique só aketera!
<azra> azra, obrigada! sim, coagulação! parece interessante!
<tatsuo> (interpela) coagulação?!
(pausa) acham?!
(pausa) a-ke-te-ra é a-ze-ra!
foi o que eu coloquei…
<íon> (franze as sobrancelhas e o nariz) mas…
<zaha> (confirmando) aketera é azera? coagulação?
hum… isso não é boa ideia! (pausa) não é mesmo! (pausa)
estou para ver o palimpsesto que vai sair daí! não vos parece
um pouco…
como direi…
um pouco fora do contexto?
(pausa. olha para todos. alterna a cabeça enquanto fala)
para além de que… depois… nas livrarias… com as vendas…
<tatsuo> (decidido) não lhes parece nada, pois o título é:
a-ke-te-ra é a-ze-ra!
capta bem a imagem de tudo o que eu tenho vindo a explorar,
de tudo o que eu tenho alterado… e faz a ponte perfeita com
o que eu vos li… o poema encaixa
<íon> aketera é azera?! mas… como?
<zaha> (chega-se à frente e suspende todos)
a propósito, meus queridos, tenham cuidado! (pausa) é que eu já pedi
a um amigo para que me escrevesse uma recensão,
com aquela parte que me deram, e…
(faz um esgar. som de rola interceptada. plano com buraco)
a criatura já se pôs a escrever um ensaio longuíssimo!
(pausa) sabem como os críticos são, não é? por isso…
<azra> (indigna-se) o quê?! mas a peça nem sequer está pronta!
por favor, zaha! o que é que te deu?
<íon> (ri-se) isto já parece uma agência imobiliária! eheh!
ainda nem têm os apartamentos construídos e já os venderam em plan-ta!
<tatsuo> (impressiona-se) mas, mas… que sentido é que isso faz? sem dúvida,
como é que se escreve uma breve crítica, ou, pior, um ensaio,
sobre uma obra da qual não se tem uma percepção total?
que ainda está em processo?
que é mutante, a qualquer segundo?
que não está fixa?
<zaha> (desconfortável) meus queridos, eu compreendo,
mas agora já não posso fazer nada! (pausa) recebi ontem
o rascunho do ensaio… já tem título e tudo:
ecrã no ecrã: contra a coagulação da forma e do sentido em…
e é aqui que entra o título final da peça, que ainda será decidido,
como já percebi! (pausa) por favor, ajudem-me…
(ninguém responde. os três abanam a cabeça. silêncio)
bom, meus queridos… depois falamos melhor!
(abana as pulseiras do braço e solta o cabelo, atrás, com a outra mão)
tenho mesmo de ir… manda-me tudo, tatsuo!
e rápido, porque, como te disse, akera, está aí a chegar a
(ouve-se uma porta grossa e pesada a bater)
<miguel> (entra de rompante pela porta lateral junto ao palco. pinga água)
olá olá, como é que vai tudo?
(voz de veludo) tudo bem, meus amigos?
(pausa. sobe as escadas para o palco) ufa! estou todo enxarcado!
peço imensa desculpa, mas está
(zaha olha para miguel. esboça um sorriso malicioso, provocador, e torce
um pouco a cabeça. miguel olha para zaha) bons olhos a vejam!
(aveluda ainda mais a voz) tem passado bem?
<zaha> genial!
<miguel> (sorri e trinca o lábio) então, meus amigos?
peço imensa desculpa, mas está cá um aguaceiro…
e o trânsito? (sacode a água do fato) ufa!
(há um apagão no palco. fica apenas a luz traseira da tela, branca, que permite
vislumbrar as personagens quase como se fossem sombras chinesas, através de
um véu. olham todos para cima, menos íon)
<zaha> (olhando para a teia) o que foi isto?
<íon> mas… o que é que se passa?
<miguel> (olhando para a teia) o que é isto? qual é o problema da teia?
<tatsuo> (olhando para a teia) o que é que aconteceu?
<íon> (para miguel) e… qual é o problema da chuva? é só água…
<miguel> bom, meus amigos, sabem como é…
com chuva, é muito desagradável…
<tatsuo> agora há algo de
<miguel> ninguém anda na rua…
enfiam-se todos nos carros…
e depois
<azra> (impaciente) por onde é que andaste, miguel?
(suspira) e por onde é que entraste?
<tatsuo> por onde é que havia de ser?
(suspira) esta semana tem chovido muito, mesmo muito…
<miguel> bom, pela porta lateral do teatro, aketera,
eu e o director temos uma chave… extra, para situações em que…
<azra> pela porta de (acentua gência) e-mer-gência…
(também preciso de uma porta que pare o tempo. com esta luz de vela,
sempre ao fim da noite, com estes olhos que tenho a estas horas, que já nem
humedecidos ficam, não tenho capacidade para acabar a revisão da peça.
dêem-me dois ou três dias de férias, sim? para que eu trabalhe?)
<íon> mas uma chave ex-tra ou uma chave su-plen-te, dom miguel?
<tatsuo> qual é a diferença?
<miguel> uma chave suplente.
(pausa) bom, é uma cópia que fiz da chave dele e
<íon> (histérico) mas é i-ta-li-a-na?
já a tinha ex-pe-ri-men-ta-do?
en-sai-a-do?
já a tinha tes-ta-do alguma vez?
<azra> deixa-te de maneirismos, íon!
<miguel> (sem admitir o erro) ainda não tinha ensaiado, não!
<zaha> (apressa a deixa) bom, meus queridos…
<íon> (olha para a tela)
assim não se lê nada no ecrã…
como é que fazemos?
consegues ligá-lo, azra?
(pausa) estou sem pista nenhuma para a deixa!
(azra vai até à parte lateral do palco e pega num comando
que está na parede. carrega no on)
<tatsuo> não é preciso! assim sem luzes até é melhor!
aquecem tanto… espero só é que as portas não se tenham bloqueado
como da última
<zaha> (impressionada) bloqueado?!
<íon> estás a trans-pi-rar tan-to, tatsuo!
<azra> (carrega e carrega nos botões) não funciona mesmo…
<tatsuo> o quê?
<íon> accionas o guião sonoro, azra?
(azra carrega noutro botão e aponta para a cabina,
como que procurando rede num telemóvel)
<azra> o som também está bloqueado…
<zaha> (desespera) bloqueado? excelente…
<miguel> não não, não se preocupe, o senhor egon está lá em cima…
está tudo sob contro
<íon> (sobrepõe-se) mas… olhe que
o té-cni-co já foi em-bo-ra, dom miguel…
<miguel> embora? a estas horas? mas vocês ainda
<íon> sim, já foi há
<azra> (dura) claro, com as tuas manias de poupança, encurtas o pessoal!
(miguel, vigoroso, estica o braço direito e depois o pulso, com pretensa distinção.
olha para o relógio, grande. tem os adereços todos à direita, pois julga que
um braço também é ideológico. algo tilinta, mas abafa-se)
<íon> (para miguel) e agora?
<miguel> oh não!
<íon> o que foi?
(para tatsuo) estás a trans-pi-rar tan-to!
<tatsuo> estou?
<miguel> (aflito) foi a minha aliança que voou para a plateia!
está tão lassa! e agora? como é que faço? está tudo tão escuro!
(de frente para a plateia)
quem é que me ajuda?
<azra> é pesada?
<miguel> pesada? pesadíssima! é de platina! e maciça!
quem é que me ajuda?
<tatsuo> procuramos no final do ensaio!
<íon> mas… e agora? o que fazemos?
<zaha> meus queridos…
<miguel> (enérgico) se for preciso, ligo ao
<íon> (abana-se)
não me estou a sentir bem…
não estou mesmo…
mas mes
(íon cai no chão, desamparado, com convulsões)
<miguel> (assusta-se) mas o que é que se passa com ele?
<zaha> (agita as mãos e pula) ó queridos, façam qualquer coisa, por favor!
<tatsuo> (já de joelhos) ajudem aqui! vá lá! rápido!
<miguel> (em pânico) o que é que se passa?
(baixa-se. sacode íon com força) o que é que se passa?
(azra baixa-se também, de joelhos, do outro lado de tatsuo. empurra íon. íon continua
com espasmos. azra dá duas estaladas na cara de íon. íon continua com espasmos)
<azra> (decidida) chamem uma ambulância, mas rápido!
(não move os olhos de íon)
agora!
<íon> (pára
os movimentos espasmódicos,
mecanicamente,
com um solavanco.
continua deitado) ai isso é que não!
(abre os olhos) isso era
re-
-al-
-men-
-te
chato!
(desata a rir, a rir)
<zaha> mas… mas…
<miguel> mas ele está…
<azra> (parece a única que percebe a peripécia de íon. tranquila)
ele está bem, claro!
<tatsuo> (sério. tenta conter o riso) que é isso, íon?
<miguel> (a cabeça dá um coice) que história toda é esta?
isto não pode… isto não acontece no meu teatro…
<zaha> mas que mau gosto…
(íon levanta-se. enxota o pó das calças de fato-de-treino,
rindo, espontâneo)
<zaha> agora está com um ataque de riso… que parvalhão!
<íon> (pára de rir. sarcástico) mas… qual é o vosso problema?
(pausa) era só para animar a malta… estava tudo tão aborrecido, não?
qual é o mal? estava só a imitar um epiléptico… era tudo a fingir!
(encolhe os ombros. descerra e expande as mãos, como se fosse uma flor,
despertando pela manhã) não estamos no teatro?!
(pausa) ainda estamos nos ensaios, qual é o problema?
<miguel> estamos, estamos!
<íon> também, sem guião, como é que eu faço?
ainda não decorei a parte final!
<miguel> (tenta assumir a sua função) mas já devia!
se gosta assim tanto de simulações, então
simule o seu papel,
treine mais as suas deixas!
(ordena) 34 flexões, íon! imediatamente!
<íon> (semicerra as pálpebras) está a brincar? (pausa)
mas… isto é algum jogo?
<miguel> (dispara o braço em flecha) 34 flexões, imediatamente!
(íon deita-se,
mecanicamente,
e eleva-se. bufa. miguel concentra-se, não se distrai de íon,
até ter cumprido o castigo)
<tatsuo> (resoluto) miguel! foi à tropa ou quê?!
já chega de episódios! acabamos isto ou não?
<zaha> (assustada e seduzida) que métodos tão… viris!
<azra> (exaspera) viris? ou virulentos? que palhaços!
<tatsuo> (sente a testa em água) estou a suar imenso…
<íon> (desfalece) ppfffffff!
<tatsuo> que é isso, íon? reage! (íon bufa. ainda não alcançou
a trigésima quarta vez)
<miguel> (alheado. tira o telemóvel do bolso do casaco. íon termina.
miguel descontrai) bom, em que parte estavam? é hora de trabalho!
<zaha> (impaciente) como é que saio daqui? (pega no
telemóvel) oh, merda! tenho de avisar o
<miguel> olha! (ligeiro espanto, quase sarcástico) estou sem rede…
<íon> (recomposto. em pé) es-tá-va-mos na parte em que
<zaha> (muito impaciente) estes telemóveis…
não tenho paciência para estas cria
<miguel> (exclama, leve) recomecemos do início! (grave)
íon, já conseguiu, pelo menos, memorizar as deixas do início?!
<íon> do início? claro! (corre e fala. atropela-se)
não me fales de girassóis não gosto de girassóis lembra-me logo
as estradas de espanha nos anos 80 e 90 cada inflo quê sim a biblioteca
já li interminável as estradas de espanha eram intermináveis
como um capítulo de um romance não há paciência é um aborrecimento
<tatsuo> do início?! por favor!
<zaha> do início ou do fim… alguém me (acentua, em crescendo)
diz co-mo é que sai-o da-qui?
<azra> (autoritária) nem penses, miguel!
estamos aqui há muito tempo!
por hoje, já chega!
<miguel> (incrédulo com a afronta)
já chega?! mas… mas eu só agora cheguei!
(desculpa-se, para os outros) se vissem o trânsito que está…
não podem tomar decisões assim tão repentinas,
sem um aviso, sem uma mensagem!
também tenho coisas melhores para fazer! (pausa) se eu soubesse…
(há um apagão geral no resto do teatro. apenas ficam acesas as luzes de
emergência. um ruído constante e agressivo é despoletado. é desagradável.
como se fossem ventiladores a média-alta rotação)
<tatsuo> estamos completamente às escuras,
que sensação! é mesmo muito melhor sem luz!
(arfa um pouco) se não fossem aquelas luzes ali…
<íon> (ansioso) estamos mes-mo às escuras?
(arfa muito) o que é que fazemos a-go-ra?
<azra> (confiante) agora, vamos embora!
por hoje, já chega!
<miguel> (despótico) não chega nada! assim, a peça nunca vai
sair bem, aketera! têm que ensaiar mais! que género de estreia é que quer?
<azra> (indigna-se) mas o que é que tu sabes sobre os nossos ensaios?
<zaha> (agita as pulseiras) meus queridos, agora é de vez!
passem bem, tenho mesmo de ir! (ouvem-se passos apressados pelo palco.
retira o telemóvel e liga o ecrã) por onde é que é agora?
<tatsuo> como é que entraste, zaha?
<zaha> ah! foi um senhor de cadeira de rodas,
por acaso, muito simpático,
e um outro,
por acaso, muito alto,
que me abriram a porta, depois de eu bater no vidro…
<íon> estamos mes-mo às escuras…
<tatsuo> mas qual porta?
<zaha> a porta principal…
<miguel> (não responde a azra) mas… se o senhor egon já foi embora,
a porta está de certeza fechada! (insinua-se) querida,
saia antes pela mesma porta por onde eu entrei, por favor!
<zaha> (enervadíssima. tenta dirigir-se para uma porta qualquer)
pocha! mas onde é que é?
<miguel> essa mesmo! (zaha segura com as duas mãos na barra
horizontal da porta de emergência) abra!
<zaha> (força a barra) esta? não dá!!!
<miguel> não desista! tente de novo!
<zaha> (tenta de novo. com mais força. ouve-se repetidamente a barra)
qual dentista?!
pocha, quem é que me ajuda?!
a porta não abre mesmo!
<miguel> espere lá, tenha calma… nada de pânico,
está tudo sob controlo!
<zaha> (desespera) eu tenho um jantaaaaaarrr!!!
<miguel> vá, não me diga! tente a outra saída de emergência, do outro
lado, (aproxima-se, arrastando os pés com vigor e lentidão, até àquilo
que julga ser o limite frontal do palco) atravesse só o corredor, aqui,
junto à plateia (ou junto ao fosso, se for o caso)!
<tatsuo> (sugere) bem, temos de fazer alguma coisa…
(tira um maço de cigarros do bolso da camisa e acende um)
<miguel> esperem lá… então e
<azra> (ordena) íon, vai lá a cima e tenta abrir uma das portas!
<íon> mas como? (a voz treme) está tudo às es-cu-ras! assim, não se vê nada…
<tatsuo> pois! a electricidade foi a baixo… estás com medo?
anda, eu vou contigo… vem atrás de mim e agarra-te às minhas costas…
<íon> não é preciso, estou a ver a ponta acesa do teu cigarro…
<tatsuo> ai estás? (puxa uma passa longa) e se se apaga?
anda lá… toca-me nas costas! isso… (saem do palco)
<azra> eu vou… pelos bastidores… (acende o ecrã do telemóvel. coloca
uma máscara de gás. sai pelas traseiras do palco. vê-se muito mal, claro,
embora já estejam todos com olhos nocturnos. há um longo silêncio)
<tatsuo> está aí alguém?
<íon> eu consigo!
(ouve-se um ruído sincopal, abafado e cadente na parte superior do teatro. depois,
espalha-se. o ruído persiste cerca de um minuto. não se consegue identificar
a fonte.
parece que vem da cabina.
parece que vem do tecto.
parece que vem das traseiras.
há uma inflamação latente)
<íon> (atemoriza-se) ouviram aquilo?
isto está a ficar um…
pouco…
com-ple-ta-
<tatsuo> o que foi isto?
<zaha> que barulho foi aquele? alguém me ajuda?!!
<íon> tatsuo? tatsuo? onde é que estás? tens um cigarro?
<tatsuo> (tatsuo toca-lhe na cabeça, sem querer, e depois
coloca-lhe um cigarro na mão) sim! toma! (acende um isqueiro)
<íon> que estranho! a plateia parece mais cheia…
<tatsuo> (em agonia) áááááááááaááiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
queimaste-me o braço, palerma!
<íon> o quê, o quê?! oh, tatsuo! desculpa, desculpa, desculpa!
<zaha> por favor, por favor! alguém me ajuda?!!
<miguel> (estica os dois braços, até ao máximo da sua envergadura,
com as mãos na vertical, girando o tronco, enquando se desloca até zaha)
esperem lá, tenham calma…
está tudo sob controlo!
está tudo sob controlo!
eu vou ajudá-la, zaha!
(o palco fica deserto)
<tatsuo> (fala alto, lá de cima) azra!
conseguiste?
(pausa longa)
<tatsuo> (grita, lá de cima) azra!
conseguiste?

(ouve-se uma voz computerizada e grave:

quem indica a passagem das plaquetas, até à
coagulação do sentido, agrada ao escriba,
para a polissemia, para a polissemia não há fármaco)

<tatsuo> (na porta superior, ao lado de íon) eu não escrevi isto…
(incrédulo, assustado) isto… não é meu!
<íon> (assustadíssimo) então… é de quem?
(ouve-se o alarme de incêndio, durante alguns segundos)

as luzes acendem-se todas.
quebra de tom nos actores, como se ficassem naturalmente não-teatrais.
saem das personagens. o sensor de água não dispara.
todos os ruídos se apagam. há uma extinção latente.

<íon> (descendo, com tatsuo, pela plateia)
olha, não choveu! será que o sensor está…
<tatsuo> pois não! era o que mais faltava…
já chegou o barulho todo, não achas? anda…
(mexe a cabeça) vamos!
<íon> já acabou, não já? podemos ir para casa?
<miguel> (acena para íon e tatsuo, dando o braço a zaha) venham!
<íon> sim, estamos a ir… dás-me as minhas sapatilhas?
(zaha e miguel sobem para o palco, pelas escadas laterais.
egon, kenule e eftan descem a plateia também.
haviam estado sentados na plateia, todo o tempo,
sem que ninguém reparasse)
<miguel> (dirigindo-se para egon, kenule e eftan, com um gesto)
boa malta! já acabou, venham!
(egon está a subir pela rampa, com o outro actor e actriz ao lado,
esperando sempre)

estão todos no palco, excepto azra. fazem uma fila, para a vénia.
olhando para o palco, íon está na ponta direita, ao lado de tatsuo.
depois de tatsuo, está zaha. ao seu lado, no meio da fila, miguel.
logo de seguida, eftan, egon e kenule.
há outra pessoa que sobe para o palco. é um homem, muito velho.
parece um eremita.
imediatamente, chegam duas mulheres. juntam-se aos outros.
os outros fazem um ar muito surpreendido. isto é realmente inesperado.
é verdadeiro.

<miguel> mas quem é que são vocês?
<tatsuo> mas, mas… o que é que fazem aqui?!
este é outro texto, não é o poema!
<prima> (sobrepondo-se a todos) eu sou a prima, claro! e esta
é a minha… é a médica do serviço onde… é a minha colega!
<zaha> (vira a cara para miguel) e quem é aquele louco?
<eremita> (em língua gestual. o texto aparece na imagem)
o meu nome é oss…
(como se as pessoas aplaudissem, começam todos a agradecer, de mãos dadas)
<íon> (corpo dobrado, de cabeça para baixo, olhando para a sua direita,
para os outros, também de cabeça para baixo, enquanto agradecem)
onde está a…
<tatsuo> a azra?
<egon> a azra?
<kenule> a azra?
<zaha> a akera ainda não chegou…
<íon> não! não! a emily!
(emily corre para o palco, pela plateia. no seu encalce, segue-a
uma personagem parecida com um polícia, com um folheto, enorme, turístico)
<eftan> (subindo o corpo) então, é fácil!
(o ar naturalíssimo, de criança)
ela não saiu para trás?
<miguel> (desdobra o corpo também, direito, vira a cabeça para trás,
para os bastidores)
já podes sair!
já acabou!
despacha-te!

azra vem ao palco, se lhe apetece,

se quiser ser.

(não há cortinas. nunca houve cortinas.
caso se tenham esquecido, estivemos sempre em ensaio)